Fogo e Bolsonaro alimentam raro debate sobre soberania e posse da Amazônia
'Quem é dono da Amazônia?', questiona o título de um artigo de opinião publicado pelo jornal americano The New York Times nesta terça-feira.
Até pouco tempo atrás, este tipo de pergunta não faria o menor sentido, e sequer aparecia de forma séria na imprensa internacional ou em círculos acadêmicos e diplomáticos.
Até recentemente, qualquer discussão sobre internacionalização da Amazônia era fácil e corretamente interpretada como teoria da conspiração, paranoia e fantasia –como ocorreu em 2008 depois de uma publicação de uma reportagem do mesmo NYT com o título "Whose Rain Forest is this, Anyway?", algo que pode ser traduzido livremente para "De quem é esta floresta tropical, afinal?".
Com o aumento das atuais queimadas na floresta, a repercussão das imagens das chamas na mata, a ampliação da discussão internacional sobre proteção ambiental e a péssima imagem do presidente Jair Bolsonaro no resto do mundo —que é muitas vezes apontado como responsável pelos incêndios–, surgem cada vez mais discussões que entram no assunto até então praticamente inédito em um tom sério.
A soberania do Brasil e a posse do território da Amazônia começam a aparecer na mídia internacional como temas mais abertos à discussão do que a ordem internacional costuma aceitar.
O presidente da França, Emmanuel Macron, foi a voz mais relevante a levantar a possibilidade de que houvesse um estatuto internacional para proteger a Amazônia, alegando que discutir status da floresta é "questão que se impõe".
Além dele, entretanto, já é possível ver aparecerem mais vozes assim no debate político internacional. A exemplo do título publicado agora pelo NYT, há cada vez mais textos que avaliam a situação da Amazônia e abrem um questionamento sobre o próprio conceito de soberania, base da política internacional.
Antes mesmo de governos europeus começarem a discutir os incêndios e verem a situação como uma crise internacional, as notícias sobre aumento do desmatamento e a impressão externa de que Bolsonaro permite a livre destruição da floresta indicavam com que fosse apenas uma questão de tempo até que as grandes potências mundiais tomassem atitudes para tentar impedir a mudança climática.
Os primeiros exemplos disso surgiram no final de julho. Ali já era possível perceber na mídia internacional a propagação de notícias sobre o aumento do desmatamento da Amazônia. A imprensa estrangeira desde então responsabilizava Bolsonaro pela redução de mecanismos de proteção da floresta, e o presidente era visto como alguém que permitia a destruição ambiental.
No meio de várias reportagens com tom crítico, um artigo publicado da revista The New Republic dizia que os Estados Unidos deveriam se preocupar mais com o aquecimento global, e passar a ver o Brasil como uma ameaça existencial maior do que o Irã e a China, tradicionalmente vistos como maior risco da atualidade pelos EUA, por conta do desmatamento crescente. Era um tom duro que até então não era visto facilmente no debate público.
Também no final do mês passado, um editorial do jornal britânico The Guardian já se colocava como favorável à ação internacional para controlar o desastre do desmatamento da floresta. A publicação defendia "o poder crescente da diplomacia climática", que tem pressionado o governo brasileiro.
Mas a verdadeira discussão sobre a questão da soberania apareceu realmente em um artigo publicado na revista Foreign Policy no início do mês. Nele, o professor de relações internacionais Stephen M. Walt, da Universidade de Harvard, falava sobre os riscos da ação internacional na floresta. O título original do texto questionava "Quem vai invadir o Brasil para salvar a Amazônia?".
O texto gerou uma reação imediata do Ministério das Relações Exteriores e do próprio Bolsonaro, e a polêmica levou a revista a mudar o título do artigo para excluir a ideia de "invasão". O mesmo texto passou a ter o título "Who Will Save the Amazon (and How)?" (Quem vai salvar a Amazônia (e como)?). A ideia de ação internacional para pressionar o Brasil e proteger a floresta, entretanto, continuou válida como debate.
Menos de um mês após o choque inicial do texto da Foreign Policy, depois da ampliação das discussões internacionais sobre a Amazônia e a propagação maciça de imagens da floresta em chamas, a situação mudou. A imagem do país em chamas se consolidou como um problema internacional ligado à reputação negativa do próprio presidente.
Agora a questão da pressão internacional para forçar (e ajudar) o Brasil a proteger a Amazônia está cada vez mais e amplamente presente no debate público. E já é possível ver até mesmo várias menções a questionamentos sobre a soberania brasileira na região da floresta.
Um artigo publicado no fim de semana pela revista The Atlantic escalou o tom. Nele, o jornalista e escritor Franklin Foer critica duramente Bolsonaro, que diz ser diretamente responsável pela proliferação do fogo na Amazônia.
Segundo Foer, o incêndio da floresta deve ser tratado pelo resto do mundo como uma ameaça maior do que as armas de destruição de massa (que foram usadas como justificativa da invasão do Iraque).
"Se um país obtém armas químicas ou biológicas, o resto do mundo tende a reagir com fúria –ou pelo menos foi o que aconteceu no passado não muito distante. Sanções choveram sobre os proliferadores, que foram então banidos da comunidade global. E em casos raros (às vezes desastrosamente mal orientados), o mundo decidiu que a ameaça justificava uma resposta militar. A destruição da Amazônia é possivelmente muito mais perigosa do que as armas de destruição em massa que desencadearam uma resposta robusta", argumenta.
Segundo ele, o mundo deve tratar Bolsonaro da mesma forma que trata o ditador venezuelano Nicolás Maduro, pressionando-o a lutar contra as queimadas.
"Evidentemente, isso pode não ser prático ou exacerbar o problema. Mas o caso da incursão territorial na Amazônia é muito mais forte do que as justificativas para a maioria das guerras. Enquanto isso, o planeta engasga com antigas noções de soberania", defende Foer.
O tema reaparece no texto de opinião do New York Times citado no início deste post. Segundo Quinta Jurecic, "os incêndios na Amazônia são uma espécie de teste de como a crise climática afetará a utilidade de conceitos aparentemente simples –como a soberania nacional".
Segundo o artigo, a ameaça do aquecimento global está se intensificando, e as táticas tradicionais de pressão internacional podem não ser suficientes.
O texto admite, entretanto, que a discussão pode gerar problemas já registrados em outras situações em que países mais poderosos se sobrepõem de forma violenta a nações mais frágeis.
Não é possível dizer que o discurso favorável a uma postura mais dura contra o Brasil é o dominante, mas é evidente que estão surgindo mais e mais vozes abrindo espaço para a discussão sobre os mecanismos internacionais para pressionar o Brasil e questões sobre a soberania da Amazônia.
O debate é amplificado pelo silêncio do governo de Donald Trump, conforme um editorial mais recente do Guardian sobre os incêndios. Os Estados Unidos poderiam ter uma influência maior no caso, e encaminhar medidas mais diretas para definir uma resposta das grandes potências em relação à Amazônia, evitando a escalada da retórica de ambos os lados. Mas Trump costuma ter uma postura desinteressada em relação a questões ambientais e tem assumido um discurso favorável a Bolsonaro. O vácuo de poder deixado pelos EUA leva à ampliação dessa discussão e à tentativa de formação de coalizões para lidar com o Brasil –como se viu na cúpula do G7.
O problema, evidentemente, não é apenas o fogo e a preocupação ambiental, nem o interesse estrangeiro no território brasileiro. Muito do que ocorre agora se dá por conta da imagem muito negativa construída pelo governo Bolsonaro no resto do mundo. O discurso dele não passa confiança aos outros países, que chegam a questionar sua legitimidade –como se vê no artigo de Foer na Atlantic. Isso força uma discussão internacional sobre como lidar com um líder que demonstra desprezo por um problema em seu território que pode gerar consequências globais –daí o questionamento à soberania.
A mera existência desse discurso, entretanto, abre precedentes preocupantes para as relações internacionais e acabam alimentando um ciclo perigoso para o Brasil e para o planeta. A ideia de soberania é um dos fundamentos básicos das relações internacionais, e a discussão em torno deste conceito pode abalar estruturas diplomáticas pelo mundo.
Além disso, vozes críticas neste nível alimentam o discurso do governo Bolsonaro e a postura do presidente de rejeitar qualquer ajuda externa, vendo qualquer movimento estrangeiro neste sentido como uma ameaça.
Assim, a troca de acusações e ameaças vai crescendo e realimentando um ciclo de discussões pouco saudáveis, enquanto a floresta continua sendo destruída. A preocupação externa cresce ainda mais, criando discussões sobre soberania que antes de Bolsonaro jamais seriam levadas a sério.
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