Falta de noção dos brasileiros sobre a realidade afeta o processo eleitoral
A defesa que alguns brasileiros fazem da ideia equivocada de que o nazismo foi um movimento de esquerda, mesmo depois de a Embaixada da Alemanha negar a informação e reafirmar o óbvio (que o nazismo era de direita), é uma prova do nível de desinformação que prolifera no país às vésperas da eleição presidencial. Os brasileiros não têm muita noção sobre a própria realidade, e isso pode afetar o comportamento dos eleitores na hora de escolher o próximo presidente.
O Brasil é o segundo país do mundo em que as pessoas mais têm a percepção equivocada sobre a realidade – o que já foi chamado de "índice de ignorância". A informação é de uma pesquisa de 2017 realizada em 38 nações para avaliar o conhecimento geral e a interpretação que as pessoas fazem sobre o país em que vivem.
O estudo está sendo publicado agora como o livro "The Perils of Perception: Why we're wrong about nearly everything" (Os perigos da percepção: Por que estamos errados sobre quase tudo), que analisa a forma como as pessoas desenvolvem sua noção sobre realidade.
"Tudo indica que o Brasil não tem uma uma percepção muito correta da realidade", disse o ex-diretor de pesquisas do Ipsos Mori, Bobby Duffy, autor do livro, em entrevista ao blog Brasilianismo.
Segundo ele, o problema não é exatamente ignorância, mas o fato de que as pessoas acreditam ativamente em coisas factualmente erradas, têm uma percepção equivocada da realidade (chamada "misperception" em inglês). Segundo o livro, é possível ver uma correlação entre o nível de certeza que a pessoa tem sobre sua avaliação e o de percepção equivocada da realidade. Quanto mais certas as pessoas acham que estão sobre um determinado tema, mais altas as chances de elas estarem erradas.
"A questão não é falta de conhecimento, mas de que as pessoas acham que estão certas, mesmo que não estejam. São duas coisas diferentes. Percepções erradas são mais difíceis de lidar do que ignorância. Quando as pessoas não têm conhecimento sobre algo, elas podem ser ensinadas. É mais difícil convencer pessoas que acham que sabem algo que na verdade está errado. Mudar a percepção das pessoas é mais difícil", explicou.
Na entrevista, ele diz que isso pode ter efeitos na política, influenciando o processo eleitoral e favorecendo candidatos com propostas mais extremistas, que se beneficiam da desinformação e do medo muitas vezes gerados por estas percepções equivocadas.
"A percepção da realidade é importante para a política, e a percepção errada pode ter impactos políticos. Isso ficou muito evidente no extremismo em torno da campanha que levou à eleição de Donald Trump, nos EUA, e no plebiscito do "brexit" no Reino Unido. As campanhas usaram questões emocionais e exageraram a exploração de preocupações das pessoas, sem se apegar a fatos. A percepção errada da realidade é uma ferramenta dessas campanhas políticas", disse.
Segundo Duffy, que vai se tornar diretor do instituto de política do King's College London neste mês, os brasileiros realmente estão entre os que mais têm percepções erradas sobre o país, o que tem relação tanto com o baixo nível da educação no Brasil quanto com a cultura de reação emocional dos brasileiros. Mesmo sem querer se apegar a estereótipos, o pesquisador diz que emoção afeta o pensamento racional e factual sobre a realidade, e que isso pode explicar os equívocos do Brasil.
Um ponto central na discussão sobre percepções equivocadas, diz, é a necessidade de educação da população para escapar de notícias falsas. Uma nova e inédita pesquisa global da Ipsos divulgada na próxima semana mostra que o Brasil é o líder entre os países onde as pessoas admitem que já acreditaram em notícias que depois descobriram ser falsas.
Segundo a pesquisa, em todo o mundo 65% dos entrevistados acham que outras pessoas vivem em bolhas na internet, mas que só 34% acreditam que eles próprios vivem em bolhas. Além disso, 58% acham que sabem identificar notícias falsas. Seis em cada dez entrevistados no mundo acham que as outras pessoas não se interessam mais por fatos, e acreditam apenas no que querem.
Leia abaixo a entrevista completa
Brasilianismo – Qual é a situação do Brasil em comparação com outros países quando falamos de percepção equivocada da realidade?
Bobby Duffy – O Brasil está muito mal. Na nossa pesquisa mais recente, de 2017, o Brasil era o segundo pior na lista de países com maior percepção errada da realidade. Só a África do Sul era pior. E, mesmo no ano anterior, o Brasil já aparecia mal, em sexto na lista com 40 países. Tudo indica que o Brasil não tem uma uma percepção muito correta da realidade. Eu acho que é um dado muito deprimente, especialmente porque a pesquisa é feita pela internet, então seria de se esperar que o público que respondeu à entrevista no Brasil seria formado em sua maior parte por pessoas da classe média, que deveriam ter uma compreensão melhor da realidade. O que achamos, na verdade, é que elas não têm noção da realidade.
A percepção das pessoas é muito marcada pela expectativa de que o mundo seja parecido com a realidade delas, o que não é verdade. As pessoas pensam que quem elas são e quem são os amigos delas representam o país inteiro, o que não é verdade.
Os brasileiros erram muito na sua interpretação da realidade, e um dado que se destaca nisso é a percepção deles sobre a gravidez na adolescência, por exemplo. Questionados sobre qual a proporção de adolescentes que engravidam a cada ano, os brasileiros erram feio. Por mais que a taxa seja alta, de 6,7% (quando a média global é de 2%), a resposta dos brasileiros na entrevista foi em média 48%. Isso é uma loucura, a ideia de uma em cada duas adolescentes engravidam por ano. As pessoas parecem se basear em opiniões emocionais, e generalizam demais casos que são na verdade bem mais raros. As pessoas acham que é um problema muito pior do que se esperava.
Brasilianismo – É comum achar que a percepção equivocada da realidade está associada à baixa qualidade da educação no país. Acha que isso faz sentido? O que faz com que a percepção dos brasileiros seja tão equivocada?
Bobby Duffy – Não minimizaria o papel da educação na percepção errada da realidade. Faz sentido associar uma coisa à outra. Não conseguimos encontrar um padrão muito definitivo em nível nacional que explique exatamente o que causa a noção errada da realidade, mas há uma relação clara entre o nível de educação e a noção da realidade no nível individual. Quanto mais educadas as pessoas que respondem à pesquisa, melhores as respostas e maior a noção do que as pessoas com menos educação. Isso vale para quase todas as perguntas. A educação não é a única resposta, e muito da percepção errada vem de uma reação mais emocional do que racional às perguntas, mas a educação tem peso, sim.
O estudo indica que não estamos falando de ignorância. Não é uma questão de falta de conhecimento, mas é uma forma de pensar. O que tentamos indicar é que precisamos incluir nas escolas ensino de capacidade de leitura crítica de textos e notícias. A forma como as pessoas se informam atualmente é muito diferente de como era no passado, e as crianças não estão sendo preparadas para lidar com isso, para separar notícias reais de notícias falsas. É preciso garantir que os jovens saibam ler as informações e questionar o que leem. A educação é importante e quanto mais bem educadas as pessoas são melhor a capacidade delas de interpretar a realidade.
Brasilianismo – Sua análise trata muito da relação entre a expressão emocional das pessoas em um país e a percepção equivocada da realidade. Por que isso?
Bobby Duffy – Pessoas que expressam suas emoções com facilidade e rapidez respondem às perguntas não com base em fatos, mas com base no que pensam sobre a realidade e em como querem mostrar isso, o que muitas vezes é marcado por erros. Não tenho um dado que prove como isso acontece no Brasil, mas a minha impressão com base na experiência de visitar o país é de que essa expressão emocional é mais marcante nos brasileiros do que em pessoas da Suécia e da Alemanha, por exemplo. Isso é importante, mesmo que não seja nosso objetivo entrar em questões de estereótipos nacionais, por exemplo.
Brasilianismo – Como a percepção equivocada da realidade pode influenciar as eleições no Brasil?
Bobby Duffy – A percepção da realidade é importante para a política, e a percepção errada pode ter impactos políticos. Isso ficou muito evidente no extremismo em torno da campanha que levou à eleição de Donald Trump, nos EUA, e no plebiscito do "brexit" no Reino Unido. As campanhas usaram questões emocionais e exageraram a exploração de preocupações das pessoas, sem se apegar a fatos. A percepção errada da realidade é uma ferramenta dessas campanhas políticas.
A política sempre usou isso, mas agora as coisas são diferentes por conta das mudanças na tecnologia, que permite que essas mensagens sejam desenhadas de forma a atingir mais pessoas de forma individual, o que passa a ter muito mais força. As pessoas estão sendo expostas a informações capazes de convencê-las independente de serem verdade ou não. Isso é um risco para a política. A democracia demanda uma esfera pública que abra espaço para debates em torno dos mesmos fatos e informações, os políticos precisam falar de forma pública, mas os discursos estão cada vez mais individualizados e direcionados a o que as pessoas querem ouvir. Isso é um risco para a política.
Brasilianismo – Como a sociedade pode lidar com isso?
Bobby Duffy – Leis e regulamentações não são suficientes, pois a tecnologia está mudando muito rapidamente. Precisamos nos armar com capacidade de pensar de forma crítica para evitar a desinformação. É impossível criar legislação para controlar o que é verdade e o que não é verdade, e isso cria preocupação sobre o controle do que pode ou não ser dito, o que é um erro. É um equilíbrio difícil de alcançar.
Brasilianismo – Seu livro diz que, quanto mais as pessoas demonstram confiança em suas respostas, mais erradas elas estão. Pode-se falar que o momento atual é de desapego aos fatos? Como mudar isso?
Bobby Duffy – É incrivelmente difícil lutar contra informações equivocadas que ganham vida própria, como a ideia de que vacinas causam autismo, por exemplo. Mesmo que toda a evidência científica seja em contrário, a reação das pessoas ao que veem como uma ameaça é puramente emocional. Isso é um problema real. A imprensa tem responsabilidade ao dar voz a movimentos que não têm muita base científica, mas que acabam ganhando espaço por serem a voz contraditória ao que diz a ciência.
Brasilianismo – Até dois anos atrás o ranking de países com percepção mais equivocada da realidade era chamado de "índice de ignorância", mas agora você diferencia entre ignorância e percepção errada. O que levou a essa mudança? Pode-se dizer que um é pior do que o outro?
Bobby Duffy – Estamos trabalhando o assunto há uma década, mas continuamos aprendendo a melhor forma de tratar isso. No começo usávamos a expressão "índice de ignorância" basicamente porque ela soava melhor. O problema é que ela não é muito precisa. A questão não é falta de conhecimento, mas que que elas acham que estão certas, mesmo que não estejam. São duas coisas diferentes. Percepções erradas são mais difíceis de lidar do que ignorância. Quando as pessoas não têm conhecimento sobre algo, elas podem ser ensinadas. É mais difícil convencer pessoas que acham que sabem algo que na verdade está errado. Mudar a percepção das pessoas é mais difícil
Por outro lado, entender a percepção errada das pessoas sobre a realidade é importante pois nos permite conhecer quais são as preocupações reais das pessoas. Quanto maior a preocupação com um tema, mais exagerada vai ser a percepção das pessoas em relação a ele. Nesse sentido, as percepções equivocadas são mais úteis para entender como as pessoas veem a realidade.
Brasilianismo – Que tipo de impacto a percepção equivocada pode ter para os países. Países em que as pessoas têm uma noção maior da realidade têm vantagens sobre os que têm percepção errada?
Bobby Duffy – Não temos um dado muito claro para responder isso de forma simples. Não parece haver uma correlação direta entre estar correto ou errado sobre a realidade e níveis de felicidade, por exemplo. Isso é algo que devemos pensar mais adiante. O ranking é muito misturado, com países que têm situação muito diferente, mas que podem ter níveis de percepção errada parecidos. Há tantas variáveis envolvidas, que achar as correlações é difícil.
Do ponto de vista individual, a sensação de que as coisas estão piorando no mundo não faz bem às pessoas. Essa é uma percepção dominante em muitos países, e então é importante mudar esta ideia e mostrar que na verdade as coisas no mundo estão melhorando.
Brasilianismo – Como fazer isso no caso do Brasil, país que realmente enfrenta um momento mais difícil atualmente do que no passado, com crise política, pior recessão da história, aumento da violência e vários problemas sociais?
Bobby Duffy – Sim, claro que nem tudo está indo bem no mundo e que há lugares que passam por situações que realmente estão indo mal. Isso cria um ambiente perigoso para as percepções das pessoas que se torna ainda pior.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.