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'Pai da aviação', Santos Dumont continua sem ser reconhecido por americanos

Daniel Buarque

07/08/2016 12h02

'Pai da aviação', Santos Dumont continua sem ser reconhecido por americanos

'Pai da aviação', Santos Dumont continua sem ser reconhecido por americanos

A abertura da Olimpíada trouxe de volta a polêmica sobre o não reconhecimento internacional (especialmente nos EUA) de Santos Dumont como inventor do avião. Tema de grande controvérsia e de fortes disputas, a "paternidade" da aviação e a reputação de um dos nomes mais importantes do país rende grandes debates.

A importância de Santos Dumont e sua relação com a imagem internacional do Brasil foi um dos temas que pesquisei enquanto escrevia o livro "Brazil, um país do presente – A imagem internacional do 'país do futuro"'. Ao estudar como o Brasil é visto no exterior, era preciso entender por que Santos Dumont seguia desconhecido e não reconhecido pelos americanos.

A tese central de pesquisadores do tema nos EUA é que Santos Dumont foi muito importante para o surgimento de tecnologias de voo, mas que o 14-bis não era o que se pode chamar avião, por mais que tenha voado.

Abaixo segue o trecho dessa polêmica no capítulo em que trato dos ícones de imagem do Brasil.

Todo brasileiro aprende desde cedo que foi um compatriota, Alberto Santos Dumont, quem inventou o avião, com seu projeto original do 14-Bis. Os brasileiros aprendem também que o mérito dessa invenção é contestado internacionalmente, especialmente nos Estados Unidos, onde defende-se que a invenção do avião ocorreu naquele país, pelos irmãos Wright. Isso gera bastante briga, torcida irracional e disputa, e raramente alguém vai ao cerne da discussão.

O centenário do voo do 14-Bis, em 2006, foi celebrado no Brasil com grande festa, lançamento de selo comemorativo pelos correios, moeda especial pelo Banco Central e apresentação de uma réplica da aeronave e espetáculo da esquadrilha da fumaça. Pesquisadores e autoridades políticas deram fortes declarações a respeito do trabalho do compatriota, ignorando mesmo a polêmica envolvendo os irmãos americanos que voaram três anos antes, em 1903.

Mesmo sendo amplamente ignorado nos Estados Unidos, dentro da área de estudos da história da aviação Santos Dumont, é visto como uma pessoa importante nos projetos de desenvolvimento de tecnologias de voo pelo mundo. Segundo Paul Hoffman, por exemplo, o brasileiro merece um lugar muito maior na história internaciona, mas não pelo 14-Bis, e sim porque ele foi o primeiro a provar que era possível voar ao contornar a Torre Eiffel em um balão dirigível, em 1901.

O mesmo tipo de análise, que aceita os méritos do brasileiro, mas não admite que ele tenha inventado o avião, é feita por Jay Spenser, que foi curador do Museu National de Ar e Espaço e do Museu do Voo, nos Estados Unidos. Segundo ele, as primeiras ideias relacionadas ao que se transformaria no futuro no avião conforme conhecido no mundo atual surgiram em Yorkshire, no nordeste da Inglaterra, cem anos antes de a invenção real ganhar os ares. Ele trata dos primórdios das invenções que levaram os homens a voarem, e sempre se refere aos irmãos Wright como "inventores da coisa real" – do avião.

Spenser, entretanto, faz questão de deixar claro que, por mais que a invenção tenha aparecido nos Estados Unidos, não há nada de puramente "americana" nela, que pode ser considerada parte do "primeiro programa multinacional de aviação." – "Além da herança americana, o Wright 1903 flyer também tem pedigree australiano, belga, holandês, inglês, francês, alemão e suíço. Essas nações tiveram uma mão direta e imediata (algumas vezes mais de uma) no sucesso supostamente solitário dos Wright em Kitty Hawk." Consequentemente, diz, tem pouco, "se qualquer coisa", unicamente americano no Flyer ou em seu desenvolvimento. "O avião poderia ter sido inventado em Manchester, Munique, Perth, Rio de Janeiro ou Toronto. Mas não foi. Foi inventado nos Estados Unidos." De forma semelhante, ele diz que por mais nacionalismo que possa gerar, o 14-Bis era uma invenção "da cabeça" de Santos Dumont, que morava na França, e também não tinha nenhum elemento que pudesse ser chamado de "brasileiro".

O pesquisador não se refere ao Brasil ou a nenhum estudo brasileiro que pudesse ter contribuído para que os aviões fossem inventados. Ele trata, entretanto, do trabalho de Santos Dummont, reconhecendo os méritos da invenção dele, mas alegando que, por mais que o brasileiro tenha avançado e tenha sido o primeiro homem a voar em um veículo mais pesado de que o ar na Europa, o que ele fez não pode ser considerado a invenção do avião como conhecemos.

O 14-Bis é descrito por ele como sendo uma invenção estranha e pouco funcional. É neste ponto que Spenser se refere a Santos Dumont pela primeira vez. "Um rico brasileiro chamado Alberto Santos Dumont fez os primeiros voos 'mais-pesados-de-que-o-ar' no final de 1906. Seu 14-Bis, uma aeronave marginal, era altamente incontrolável, mas isso não o incomodava; seu objetivo era simplesmente levá-lo ao ar."

Para ser qualificado como avião, diz Spenser, uma máquina precisa ser tripulada, movida por motor próprio, mais pesada de que o ar, capaz de decolar com sua própria força, levantar voo saindo do solo (não apenas planando baixo, levantado por um colchão de ar contra o solo) e ser controlável em todos os três eixos. "Este entendimento rigoroso de o que constitui um avião era amplamente ausente nos primeiros dias da era da aviação", explica. O problema, segundo ele, é que no início do século XIX poucas pessoas estavam envolvidas de fato com as pesquisas relacionadas à aviação e ainda não haviam sido consolidadas todos os fundamentos teóricos do assunto, fazendo com que houvesse muitos erros e falhas de registros históricos formais por falta de entendimento do que de fato estava acontecendo. "Até o final de 1908, apenas o Wright 1903 Flyer e seus descendentes imediatos podiam ser chamados de avião [segundo os conceitos contemporâneos]. Mesmo assim, a confusão sobre a definição desta invenção, e o atraso em compreender o que ocorreu na America do Norte, levou a Europa a falsamente declarar a primazia em voos mais pesados de que o ar."

Quando foram divulgadas internacionalmente, as fotografias da máquina de Santos Dumont foram recebidas com muito entusiasmo. "A celebração pan-continental era prematura, entretanto, pois o 14-Bis não era, na verdade, um avião. Impossível de ser controlado ou mantido no ar." Spenser ironiza até mesmo o design do "avião" brasileiro. "O que é engraçado sobre o 14-Bis é que o propulsor ficava na parte de trás, e o que parecia a cauda na verdade era a frente dele. Parado no chão, ele parecia que deveria ir em uma direção, quando na verdade Santos Dumont pretendia ir na outra. Este desenho invertido deu à aviação o termo canard para uma aeronave em que as asas principais estão na parte de trás, como um pato, ou ganso."

Se a invenção mais famosa do brasileiro era um "beco sem saída tecnológico", e o 14-Bis não influenciou ninguém, como defende Spenser, Santos Dumont não era irrelevante, nem desapareceu da cena da aviação. "Ele voltou a ter destaque em 1909 com a pequena Demoiselle, um dos sucessos mais agradáveis do início da aviação", diz. Mesmo com toda a crítica que faz ao 14-bis e sem aceitar que ele tenha inventado o avião, Spenser rasgou elogios a Santos Dumont, que diz ser "um dos meus preferidos entre os pioneiros da aviação", disse. "Espero que minhas palavras sobre Santos-Dumont e o seu 14-Bis não incomodem os brasileiros. Minha visão de que esta aeronave de 1906 não entra na definição de um avião de verdade é quase universalmente apoiada por historiadores da aviação americanos e britânicos", disse.

Segundo Spenser, apesar de Santos Dumont não ter inventado o avião, ele emocionou o mundo, ganhou corações com sua personalidade e inspirou outros a voarem – o que faz com que ele mereça mais reconhecimento de que tem nos Estados Unidos. "Por isso destaco que ele voltou à cena em 1909 com o terceiro monoplano bem-sucedido do mundo, o excelente Demoiselle. Foi talvez a mais bela e mais segura máquina voadora de antes da Primeira Guerra Mundial."

O pesquisador alega ainda que a falta de reconhecimento entre os americanos se dá porque "os americanos são bem ignorantes sobre informações do resto do mundo, o que é deprimente". Segundo ele, a população do país não reconhecer o nome de Santos-Dumont não quer dizer muita coisa e "qualquer pessoa que saiba mesmo que pouco sobre historia da aviação, o nome dele sem dúvida é conhecido."

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Sobre o Autor

Daniel Buarque vive em Londres, onde faz doutorado em relações internacionais pelo King's College London (em parceria com a USP). Jornalista e escritor, fez mestrado sobre a imagem internacional do país pelo Brazil Institute da mesma universidade inglesa. É autor do livro “Brazil, um país do presente - A imagem internacional do ‘país do futuro’” (Alameda Editorial) e do livreto “Brazil Now” da consultoria internacional Hall and Partners, além de outros quatro livros. Escreve regularmente para o UOL e para a Folha de S.Paulo, e trabalhou repórter do G1, do "Valor Econômico" e da própria Folha, além de ter sido editor-executivo do portal Terra e chefe de reportagem da rádio CBN em São Paulo.

Sobre o Blog

O Brasil é citado mais de 200 vezes por dia na mídia internacional. Essas reportagens e análises estrangeiras ajudam a formar o pensamento do resto do mundo a respeito do país, que tem se tornado mais conhecido e se consolidado como um ator global importante. Este blog busca compreender a imagem internacional do Brasil e a importância da reputação global do país a partir o monitoramento de tudo o que se fala sobre ele no resto do mundo, seja na mídia, na academia ou mesmo e conversas na rua. Notícias, comentários, análises, entrevistas e reportagens sobre o Brasil visto de fora.

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