Topo

Blog do Brasilianismo

Não, a CIA não está planejando um golpe no Brasil (provavelmente)

Daniel Buarque

24/03/2015 10h10

Texto publicado em site editado na Rússia aponta que EUA querem derrubar o governo Dilma

Texto publicado em site editado na Rússia aponta que EUA querem derrubar o governo Dilma

A tensão política que o Brasil atravessa e os debates com argumentos extremos a favor e contra o governo de Dilma Rousseff criaram o clima para que a internet fizesse o que faz de melhor: divulgar teorias da conspiração.

Nas últimas semanas, começaram a circular boatos de que a desestabilização do governo brasileiro faz parte de um plano da CIA, a agência de inteligência dos Estados Unidos, e do governo norte-americano para derrubar a presidente. Até o líder do PT na Câmara, Sibá Machado (PT-AC), divulgou em sua página no Facebook que suspeita "que a CIA esteja coordenando a campanha pelo enfraquecimento dos governos da América do Sul 'não alinhados"'.

Teorias da conspiração são sempre fascinantes, e existem provas de que os Estados Unidos de fato estiveram envolvidos diretamente no golpe militar de 1964 no Brasil e em várias outras ações na América Latina. Entretanto, 2015 não é 1964. O mundo não vive uma Guerra Fria, o governo do Brasil não ameaça de forma clara nenhum interesse geopolítico dos Estados Unidos ou do capital internacional, e não existe nenhuma evidência real de que a CIA esteja planejando um golpe no país.

A principal "prova" usada pelos que acreditam no golpe até agora é um artigo obscuro publicado em novembro do ano passado em uma revista acadêmica eletrônica editada na Rússia. O texto não tem nenhuma evidência real, nenhuma prova, mas vem sendo divulgado na internet como uma "grande revelação" da conspiração (tanto que o texto segue entre os mais lidos do site russo quatro meses após sua publicação). O texto também tem circulado com tradução em português e em vídeo narrado em português.

Sem evidências
Apesar de não acreditar na teoria da conspiração, preferi buscar pessoas que entendem melhor do assunto, para não correr o risco de estar sendo alienado e manipulado pelos conspiradores.

Conversei sobre o caso com o sociólogo e cientista político João Roberto Martins Filho, que disse achar que falta fundamento para as teorias de que os Estados Unidos conspiram contra o governo Dilma. Professor da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Martins Filho é especializado em política brasileira com ênfase em teoria da guerra e da estratégia, forças armadas, ditadura militar, governos militares e golpe de 1964. A meu pedido, ele leu o texto que serve de base para as teorias conspiratórias.

"O artigo me pareceu sem fundamento maior. Não vejo evidência de interferência do governo dos EUA nas últimas eleições. É a volta de uma tese muito em voga na esquerda americana nos anos 1960 e que continua influente até hoje, em certos setores dela", disse, em entrevista.

Segundo o pesquisador norte-americano Nikolas Kozloff, autor de livros sobre a esquerda latino-americana e crítico da política dos Estados Unidos para a região, não há nenhuma evidência de envolvimento dos EUA em qualquer tentativa de golpe no Brasil. Kozloff me concedeu uma rápida entrevista sobre o tema e se disse cético por não haver nada que mostre os imperialistas "com a mão na massa".

"Por mais que não fosse me surpreender se os EUA estivessem exercendo seus tradicionais esforços de desestabilização, não existe nenhuma evidência clara. Que fatos concretos são usados para alegar isso? Desconfio um pouco desse artigo que fala sobre isso, pois a página se parece com publicações a favor do governo russo", disse.

Kozloff atualmente estuda os recentes acontecimentos na Ucrânia e os interesses da Rússia na região, então e está acostumado a ver publicações a favor dos russos. E o site do "New Eastern Outlook", que publicou o artigo sobre a conspiração da CIA, de fato é editado em Moscou, em inglês e em russo.

No livro "Brazil, um país do presente" (Alameda Editorial), em que escrevo sobre a imagem internacional do Brasil, menciono que a opinião geral de pesquisadores americanos que estudam a relação entre o país e os Estados Unidos é que a maior potência internacional não vinha prestando muita atenção ao Brasil no século XXI.

Nos últimos anos, a revelação de grampos a líderes brasileiros mostrou que os americanos estão, sim, atentos ao que se passa no país, e isso acabou estremecendo as relações entre os dois governos (e Dilma cancelou uma viagem que faria aos EUA). Ainda assim, faltam evidências de que os interesses políticos e econômicos dos Estados Unidos no Brasil foram ameaçados em algum momento pelo governo Dilma, o que poderia incentivar alguma ação americana no país. Para todos os efeitos, a prioridade americana na região continua sendo controlar a Venezuela, e o Brasil é bem diferente do país governado por Nicolás Maduro – E, nessa situação, o Brasil ainda é visto como um parceiro americano em contraposição à Venezuela.

Paranoia
Interessado em teorias da conspiração envolvendo intervenções norte-americanas no Brasil, em 2010 eu pesquisei profundamente o caso do suposto mapa usado em escolas americanas, em que a Amazônia apareceria como região "internacional". O caso era uma grande farsa criada no Brasil, como explico em "Brazil, um País do Presente", mas serve como uma boa base para entender a mentalidade de quem acredita nas teorias de conspiração.

Há algum tempo eu entrevistei o consultor George Friedman, diretor da Agência de Inteligência Global Stratfor, grupo privado fundado em 1996 com objetivo de desenvolver pesquisas sobre a geopolítica global. A conversa falava de forma genérica sobre interesses norte-americanos no Brasil, mas sua resposta sobre o risco de intervenção norte-americana no país se encaixa bem no contexto atual.

"Não há possibilidade de intervenção americana no Brasil, mas a America Latina adora a fantasia de intervenção dos EUA, pois isso sempre serviu para explicar os fracassos do continente. Os EUA sempre foram os vilões", disse. "Os latino americanos são obcecados com os EUA. Ou reclamam de não ser levados a sério, ou de serem levados a sério."

Uma outra entrevista que fiz em contexto diferente também serve para entender o que acontece quando se propaga a teoria conspiratória de que a CIA quer derrubar Dilma – e é importante para este post.

"O principal problema com as teorias da conspiração é que elas são irrefutáveis", segundo o psicólogo social Jovan Byford, autor do livro "Conspiracy theories"(Teorias da conspiração), que analisa o fenômeno em escala global.

Conversei com Byford em 2011, escrevendo sobre teorias da conspiração relacionadas aos atentados terroristas de 11 de setembro de 2001, nos EUA, mas o que ele falou se encaixa bem no caso atual do Brasil. Segundo ele, é impossível provar que uma conspiração não existe, e qualquer prova contra a teoria da conspiração pode ser interpretada por seus seguidores como parte da conspiração.

Portanto, só para deixar claro, o governo americano não está me pagando nada por este post, e eu não tenho nenhum interesse pessoal em uma possível conspiração no país.

Revelação vinda da Rússia
O texto que tem causado furor em sites que acusam os EUA de conspirarem contra Dilma foi escrito por um certo F. William Engdahl. Seu site pessoal o apresenta como consultor de risco com diploma em Política na universidade Princeton e autor de um best-seller sobre geopolítica e petróleo. A loja Amazon tem vários títulos escritos por ele. O mais recente fala dos esforços dos EUA para diminuir o poder crescente da China.

A publicação, que vem sendo citada como "um dos jornais mais lidos dos EUA", não é exatamente um jornal, já que o termo "journal" é usado para se referir a revistas acadêmicas. O "New Eastern Outlook" é uma revista acadêmica pouco conhecida na academia, e tem foco em análises sobre a Ásia, a África, o Oriente Médio e o Leste da Europa.

O texto alega que Dilma sofreu uma campanha de desinformação do Departamento de Estado dos EUA durante a eleição do ano passado, e que a campanha de Aécio Neves teria sido apoiada pelos americanos. O governo dela teria se tornado alvo por estar se aproximando dos outros países dos BRIC (Rússia, Índia e China), o que afetaria interesses econômicos norte-americanos.

O problema é que o texto não apresenta nenhuma evidência dessa conspiração norte-americana. Uma das poucas "provas" usadas é que o governo Dilma tinha 70% de aprovação popular no início de 2013, e que os protestos de junho daquele ano começaram logo depois da visita do vice-presidente dos EUA, Joe Biden, ao país.

Dizer que os protestos de maio de 2013 aconteceram por influência do vice-presidente dos EUA é desconhecer completamente o que aconteceu no Brasil. Engdahl dá a entender que o protesto por "20 centavos" no aumento da passagem de ônibus em SP foi uma fachada para a manipulação americana, o que ofenderia qualquer manifestante que foi às ruas naquela ocasião.

Enviei um e-mail para Engdahl há uma semana, solicitando uma entrevista sobre seu artigo, mas ele não me respondeu.

Assim como são irrefutáveis, as teorias da conspiração também são surpreendentes. Claro que é possível que exista algum tipo de manipulação envolvida na atual instabilidade política brasileira – contra ou até mesmo a favor do governo. A questão é que o país enfrenta problemas reais de instabilidades políticas, com casos sérios de corrupção e desaceleração em sua economia. Considerando que não existe nenhuma evidência real de conspiração internacional, o foco deveria estar em resolver os problemas internos, buscar a estabilidade democrática, em vez de procurar culpados fora do país.

Sobre o Autor

Daniel Buarque vive em Londres, onde faz doutorado em relações internacionais pelo King's College London (em parceria com a USP). Jornalista e escritor, fez mestrado sobre a imagem internacional do país pelo Brazil Institute da mesma universidade inglesa. É autor do livro “Brazil, um país do presente - A imagem internacional do ‘país do futuro’” (Alameda Editorial) e do livreto “Brazil Now” da consultoria internacional Hall and Partners, além de outros quatro livros. Escreve regularmente para o UOL e para a Folha de S.Paulo, e trabalhou repórter do G1, do "Valor Econômico" e da própria Folha, além de ter sido editor-executivo do portal Terra e chefe de reportagem da rádio CBN em São Paulo.

Sobre o Blog

O Brasil é citado mais de 200 vezes por dia na mídia internacional. Essas reportagens e análises estrangeiras ajudam a formar o pensamento do resto do mundo a respeito do país, que tem se tornado mais conhecido e se consolidado como um ator global importante. Este blog busca compreender a imagem internacional do Brasil e a importância da reputação global do país a partir o monitoramento de tudo o que se fala sobre ele no resto do mundo, seja na mídia, na academia ou mesmo e conversas na rua. Notícias, comentários, análises, entrevistas e reportagens sobre o Brasil visto de fora.

Blog Brasilianismo