Livro de Debret mostra a formação da imagem internacional do Brasil
"Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil", obra clássica do artista francês Jean-Baptiste Debret, acaba de ser reeditada no Brasil, depois de ficar fora da catálogo por mais de 30 anos.
Trata-se de uma das mais importantes representações da formação histórica da imagem internacional do Brasil. O livro é o resultado da experiência de Debret, que fez parte da comitiva de artistas europeus convidados a retratar o Brasil após a chegada da corte portuguesa, em 1808.
O próprio convite a Debret já demonstrava uma preocupação da corte de D. João VI em promover a imagem do Brasil, que seria retratado por artistas internacionais.
Debret viveu no Rio de Janeiro como pintor oficial da corte entre 1816 e 1831. Nesse período, retratou as paisagens naturais e urbanas do país que começava a surgir.
Parte de uma comitiva com outros artistas, ele é considerado o que mais marcou a história no período, concernindo o ensino das artes, os registros da vida urbana e rural no Rio de Janeiro. Retratou ainda os usos e costumes da corte, o cotidiano da escravidão (o que lhe rendeu críticas no Brasil), e o detalhamento da diversificada fauna e flora.
O livro de mais de 600 páginas com textos e gravuras que retratam a realidade do Brasil do começo do século XIX, quando o país começava a se consolidar como nação.
"'Viagem pitoresca e histórica ao Brasil' incitará novas reflexões sobre nosso país, não apenas pela forma como fomos vistos e transformados em protagonistas de uma história a qual, durante muito tempo, do século XVI ao XIX, foi examinada e interpretada por olhares estrangeiros que, com suas obras, descreveram nossa terra, seus usos e costumes", diz o texto de apresentação no livro, evidenciando sua importância para entender a formação do imaginário estrangeiro sobre o país.
Em uma análise publicada na "Folha de S.Paulo", comento o quanto a reedição reflete a longa tradição da luta do Brasil para entender a ambiguidade da identidade nacional ao lidar com representações exóticas da sua realidade.
Desde o século XIX, o Brasil enfrenta uma situação dúbia, na qual tenta lutar contra a imagem negativa do país, mas acaba promovendo esta mesma imagem. No passado isso ocorria em relação ao seu exotismo, e atualmente em relação a sua personalidade como país decorativo.
No passado, o Brasil combatia a imagem de país exótico. Foi assim nas participações em exposições internacionais promovidas por Dom Pedro II, por exemplo.
É assim até hoje, enquanto o país tenta se promover como nação relevante para o resto do mundo, mas acaba sendo um vendedor de commodities e promovendo sua imagem de país de grandes festas como a Copa e a Olimpíada.
Debret é conhecido especialmente pelas imagens que produziu, mas o livro é impressionante especialmente por elas serem acompanhadas de textos detalhando as observações sobre sua experiência.
No trecho abaixo, por exemplo, ele comenta sobre a personalidade do brasileiro do Rio de Janeiro no século XIX.
"O brasileiro, geralmente bom, é dotado de uma vivacidade que se vislumbra nos seus olhos pretos e expressivos, feliz disposição natural que ele aplica com êxito no cultivo das ciências e das artes. Sua tendência inata pela poesia inspira-lhe o gosto do belo ideal, do sobrenatural nas suas narrativas, principalmente quando fala de seu país; seu amor-próprio, que nisso se compraz, torna-o em geral contador de histórias com as quais procura causar impressão e provocar o espanto e a admiração do auditório. Suas faculdades naturais declinam na proporção da menor altitude em que habita. Mais fraco, então, e conservando apenas a vivacidade do espírito brasileiro, nos outros unida à força, não passa de um homem fértil em projetos, subjugado pelos seus desejos, que se sucedem demasiado rapidamente e cuja execução ele abandona por completo, julgando-a frivolamente penosa ou aborrecida. Nem por isso se mostra menos exigente quanto à perfeição dos objetos submetidos à sua crítica; mas é suficiente satisfação para seu amor-próprio descobrir-lhes os defeitos. É, no entanto, paciente nos trabalhos manuais. Aliás, gosta bastante do repouso, principalmente durante as horas quentes do dia, desculpando-se sem cessar com sua má saúde, de que parece afligir-se no momento, mas que esquece logo para divertir-se com uma piada ou uma maledicência engenhosa cujo segredo recomenda pró-forma. Minha observação, repito-o, baseia-se inteiramente nas variações da atmosfera, pois é fácil de compreender que um clima continuamente quente e úmido, debilitando as forças físicas, torna o homem preguiçoso na realização de sua vontade, embora seja ele dotado de um espírito vivo e penetrante."
Crítico sob críticas
A experiência de Debret enquanto "crítico externo" do Brasil também tem paralelo com os dias atuais.
Sua obra chegou a ser censurada no Brasil por retratar a crueldade com a qual os escravos eram tratados no Brasil.
"A atitude do paciente é tal que provoca horror. Pode ser que o sr. Debret tenha assistido a um tal castigo, com efeito existem por toda parte feitores bárbaros: porém isso não é senão um abuso", dizia a avaliação ddos peritos que foram contra a publicação do trabalho, ainda no século XIX.
"A fim de fundamentar sua recusa, a comissão passará a desqualificar o pintor por diversas vias: se esses corpos mais parecem esqueletos, é porque Debret não sabe pintar; se o comerciante parece um bruto satisfeito, é porque sua representação é caricatural; se a imagem do castigo causa horror, a culpa é novamente de Debret — pois ele mesmo afirma, em seu texto, que os portugueses são mestres relativamente menos cruéis que os outros. Ele se contradiz — e, de resto, os franceses fazem coisa bem pior quando jogam os negros ao mar, a fim de escapar à vigilância inglesa sobre o tráfico. Portanto, Debret fica a dever, como testemunha, como pintor, como autor e como francês. O tomo ii será rejeitado pela comissão, sob pretexto de que 'ce volume est de peu d'interêt pour le Brésil"', conta um dos textos que apresentam a obra agora reeditada, em relação à campanha contra as críticas internacionais.
Este tipo de comportamento de brasileiros insatisfeitos com comentários de desaprovação de estrangeiros é comum até hoje. Basta ver a reação que se tem quando algum jornal internacional critica o país, ou assume alguma posição partidária contrária à do leitor. De forma semelhante, tenta-se até hoje desqualificar o comentarista, alegando, por fim, que a análise estrangeira "é de pouco interesse para os brasileiros".
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