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Temer legitima militarização como solução para problemas sociais do Brasil

Daniel Buarque

22/02/2018 04h00

Christoph Harig*

Supostamente reagindo a uma onda de crimes durante o carnaval do Rio de Janeiro, o presidente Michel Temer decretou uma intervenção federal na segurança pública do Rio até o final de 2018. Usada pela primeira vez desde a redemocratização do país após o governo militar de 1964 a 1985, esta medida constitucional transfere a responsabilidade formal pela segurança pública no Rio para um general do Exército.

Um papel tão proeminente para as forças armadas evoca memórias desagradáveis. No entanto, deve-se repetir que esta intervenção federal não é uma "intervenção militar". Em vez disso, é uma escolha deliberada do governo colocar um general do Exército responsável por um papel que poderia e deveria ser assumido por um civil. Além disso, só é possível usar tropas em papéis policiais porque o governo federal já havia autorizado previamente uma operação militar de "Garantia da Lei e da Ordem".

Desde o fracasso do programa de pacificação inicialmente promissor do Estado, as taxas de criminalidade no Rio estão aumentando. Ainda assim, a intervenção federal é principalmente um golpe de publicidade por um Temer extremamente impopular e abatido. E, de fato, uma pesquisa sugeriu imediatamente que 83% dos residentes do Rio apoiariam a intervenção. As políticas de segurança pesadas prometem maior ganho político quando são amplamente televisionadas –daí a escolha do Rio. Se o governo federal realmente considerou que as intervenções eram uma medida com chances de ser bem-sucedida, ficam em dúvida as razões por que não intervem nos nove estados brasileiros com taxas de homicídios ainda maiores do que o Rio de Janeiro.

Temer, que segundo rumores está se preparando para se candidatar à Presidência, pode muito bem estar tentando matar dois coelhos com uma cajadada só: como as emendas constitucionais não são permitidas durante uma intervenção federal, o decreto cria uma desculpa perfeita para não alcançar os votos para uma contestada reforma da previdência. Temer não é, nem de longe, o primeiro político a descobrir o potencial de marketing das operações militares internas. Durante as presidências de Lula da Silva e Dilma Rousseff, tropas vestindo fardas parecidas com as das forças de paz brasileiras no Haiti foram usadas para criar uma imagem favorável da ocupação do Complexo do Alemão do Rio (2010-2012) para o público doméstico e internacional.

O golpe de publicidade de Temer além disso obscurece o fato de que os militares têm sido atores cruciais na segurança pública do Rio há muitos anos. A fim de encobrir suas próprias falhas e problemas financeiros, os governos estaduais do Rio tornaram-se cada vez mais audaciosos ao solicitar ajuda militar. Ao anunciar a operação mais recente e ainda em curso de "Garantia de lei e ordem", em 2017, o ministro da Defesa, Raul Jungmann, anunciou que os militares implementariam um ambicioso plano de segurança pública que seria baseado em operações pontuais conduzidas pela inteligência, que deveriam prejudicar o crime organizado. Em seguida, 31 mil soldados foram enviados em 2017, a maior parte com resultados decepcionantes.

Agora, sendo responsável por todo o aparelho de segurança do Rio, o general Braga Netto –o nome indicado pelo governo– poderia primeiro reorganizar ou até mesmo demitir comandantes de polícia locais. Os militares podem usar a margem de manobra recentemente concedida para tentar contornar aqueles dentro das agências do Rio que eles responsabilizam por vazamento de informações aos criminosos antes das operações anteriores. Como Jungmann voltou a falar da importância da inteligência e das operações cirúrgicas ao descrever a intervenção federal, o papel das forças armadas nas ruas do Rio não pode, portanto, mudar muito, pelo menos por enquanto.

Talvez o mais preocupante, a intervenção federal é mais uma oportunidade para aqueles que apoiam ações mais decisivas contra as quadrilhas exigirem uma abordagem de "atirar para matar". A este respeito, os esforços anteriores de retratar as ocupações das favelas como uma espécie de manutenção da paz da ONU domesticamente teriam um renascimento menos publicitário. Entrevistas e pesquisas que realizei com ex-forças de paz brasileiras para um recente projeto de pesquisa sugerem que alguns oficiais realmente querem que as missões internas sigam regras de engajamento similares e garantam a mesma proteção legal que durante a missão de paz da ONU no Haiti –onde o Brasil alcançou um considerável sucesso militar usando força ofensiva contra gangues. No entanto, essas ações também levaram à morte de inúmeros inocentes na capital do Haiti, Porto Príncipe.

Já no ano passado, o comandante do exército pediu uma discussão na sociedade sobre a necessidade de aceitar vítimas inocentes na luta contra o crime organizado. Além disso, as Forças Armadas pressionaram com sucesso para retirar homicídios cometidos por tropas do sistema de justiça civil. Em outras palavras: soldados que matam civis durante operações internas agora serão julgados em tribunais militares –uma medida que foi criticada por aumentar o risco de impunidade. Essas preocupações só cresceram à medida que o Exército se recusou a cooperar com investigadores que tentaram descobrir quem matou oito civis durante uma operação conjunta entre a Polícia Civil e as Forças Armadas.

Assim, todos os pré-requisitos estão em vigor para que os militares tomem uma postura mais forte possivelmente às custas vidas de civis inocentes –pelo duvidoso benefício da popularidade do presidente Temer. No entanto, ainda é cedo demais para dizer se as Forças Armadas estão realmente dispostas a se envolver em um empreendimento tão arriscado. Os militares foram surpreendidos pelo decreto de Temer. Braga Netto é conhecido por ser cético em relação a operações de "Garantia da Lei e da Ordem" e deixou claro que ele ainda não concluiu a etapa de planejamento da intervenção.

Em todo caso, uma estratégia mais ofensiva provavelmente não seria bem sucedida no longo prazo. Se os militares realmente enfrentarem os grupos armados do Rio, como o Comando Vermelho, inevitavelmente acabariam por ajudar grupos rivais, principalmente o Primeiro Comando da Capital, com sede em São Paulo, o que, sem dúvida, representa uma ameaça maior para as instituições do Brasil do que qualquer quadrilha do Rio. Mesmo no caso improvável de que os militares conseguissem acabar com o domínio territorial de um ou mais grupos armados do Rio, é evidente que a guerra contra a droga continuaria a proporcionar incentivos financeiros para que outros assumissem o seu lucrativo negócio. Além disso, o "efeito balão" provavelmente deslocaria as atividades criminosas para os Estados vizinhos, que, por sua vez, poderia, ver motivo para pedir assistência militar.

Não obstante a improbabilidade do sucesso, o presidente Temer colocou os militares em uma situação desfavorável e, assim, gerou um perigoso precedente para a democracia brasileira. As Forças Armadas certamente não podem resolver os conhecidos problemas estruturais do Rio e a falta de instituições adequadas de segurança pública. Em um país assolado pelo crime onde mais de metade da população concorda que "bandido bom é bandido morto", não é irracional sugerir que o fracasso esperado das Forças Armadas só levaria a novos pedidos de militarização. Ao chamar as tropas, Temer pode conseguir tirar votos do candidato presidencial radical de direita Jair Bolsonaro. No entanto, da mesma forma, Temer acaba por legitimar a lógica do intervencionismo militar como solução para problemas políticos e sociais. O Brasil já segiu essa estrada antes, e o resultado não foi positivo.

*Christoph Harig é cientista político e PhD em estudos de segurança pelo King's College de Londres. Sua pesquisa de doutorado sobre o Brasil envolveu um estudo sociológico sobre a percepção das tropas de Garantia da Lei e da Ordem e da Minustah. Ele escreve regularmente no Twitter. Este texto foi escrito a convite do blog Brasilianismo.

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Sobre o Autor

Daniel Buarque vive em Londres, onde faz doutorado em relações internacionais pelo King's College London (em parceria com a USP). Jornalista e escritor, fez mestrado sobre a imagem internacional do país pelo Brazil Institute da mesma universidade inglesa. É autor do livro “Brazil, um país do presente - A imagem internacional do ‘país do futuro’” (Alameda Editorial) e do livreto “Brazil Now” da consultoria internacional Hall and Partners, além de outros quatro livros. Escreve regularmente para o UOL e para a Folha de S.Paulo, e trabalhou repórter do G1, do "Valor Econômico" e da própria Folha, além de ter sido editor-executivo do portal Terra e chefe de reportagem da rádio CBN em São Paulo.

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