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Vontade de ser potência marca história das relações do Brasil com o mundo

Daniel Buarque

29/10/2017 07h14

O Brasil sempre quis ser uma potência internacional e defendeu uma ordem global diferente da que existe, mas em muitos momentos acabou "dando um passo maior do que a perna", ou desenvolvendo problemas internos, o que fez o país perder força diplomática.

Esta avaliação é dos pesquisadores de política internacional David Mares e Harold Trinkunas, do Instituto Brookings, nos EUA. Eles fizeram esta análise durante entrevista conjunta, por telefone, com o autor deste blog Brasilianismo em meados 2016, quando lançaram um livro sobre a longa história dessa aspiração do país, que nunca conseguiu alcançar totalmente seu potência. No meio do caos de notícias no Brasil da época da Olimpíada de do impeachment de Dilma Rousseff, a entrevista acabou nunca sendo publicada. Apesar de inédita, ela continuou muito atual, e é publicada abaixo quase integralmente (a não ser por perguntas e respostas que ficaram datadas por conta do noticiário).

Trinkunas e Mares são autores de "Aspirational Power – Brazil on the Long Road do Global Influence'' (Potência aspiracional — O Brasil na longa estrada para a influência global, em tradução livre). A obra que trata o Brasil como uma potência emergente que tem tentado usar do soft power, o poder de influência, para ganhar relevância no resto do mundo e buscar revisar aspectos da ordem internacional estabelecida.

Desde que se tornou independente, o país tentou se projetar no resto do mundo como uma nação diferente dos suas vizinhas na América Latina, buscando ter um papel de relevância no planeta e promover sua imagem internacional.

Mares e Trinkunas defendem que o Brasil não quer influenciar a ordem internacional por se achar mais importante do que é. "Ele realmente acha que a ordem internacional tem aspectos negativos sobre a capacidade de se desenvolver, e quer uma ordem internacional diferente, na qual o Brasil tivesse mais voz, o que aceleraria o desenvolvimento do país". Segundo eles, o Brasil e o sistema internacional se beneficiariam de uma maior influência do Brasil

O problema dessa aspiração brasileira, segundo eles, é que o Brasil às vezes exagera na tentativa de influenciar negociações internacionais. "O Brasil se mete em problemas quando tenta dar um passo maior do que a perna, e alcançar mais do que consegue com seu nível de influência", dizem.

Segundo os pesquisadores, o Brasil até hoje não atingiu seu objetivo, e vai continuar sem atingir enquanto não conseguir criar bases sólidas para suas instituições domésticas para desenvolver com mais força seu poder de convencimento na arena internacional.

Brasilianismo – O título do seu livro lembra imediatamente a famosa ideia de que o "Brasil é o país do futuro, e sempre vai ser". Como acham que essa ideia está relacionada ao que descrevem como aspiração por poder?
Harold Trinkunas – A ideia de "país do futuro" é muito usada, mas não é nosso foco. Nosso título vem do fato de que percebemos muito fortemente na história do brasil uma aspiração por uma ordem mundial de alguma forma diferente. Não necessariamente baseada em princípios diferentes dos existentes na ordem liberal internacional atual, mas com foco diferente, enfatizando a igualdade de soberania e um maior nível de consequência relacionada ao unilateralismo, mesmo para as grandes potências. Isso é parte das aspirações do Brasil.

Mas o livro busca uma abordagem mais ampla sobre o que querem as nações emergentes. Enquanto elas se tornam mais ricas e desenvolvidas, quais são suas aspirações no mundo, já que passam a ter um maior poder de influência?

Brasilianismo – E o que descobriram?
Harold Trinkunas – A resposta está em duas questões. Todas as nações emergentes criticam a ordem vigente, pois ela foi definida pelos países que vieram antes delas. Elas não estavam presentes ou não tinham voz na criação da ordem internacional. Então há uma aspiração por reformas. Por exemplo, o assento permanente no Conselho de Segurança da ONU, maior poder no FMI e no Banco Mundial. Há aspirações por reformas.

O outro ponto diz respeito aos princípios dessa ordem global, e percebemos que o Brasil não é muito revisionista. Ele não quer princípios diferentes, mas mais ênfase em questões do seu interesse, como igualdade de soberania, do que em questões já estabelecidas, como intervenções humanitárias ou unilateralismo pelas grandes potências. A grande questão para os EUA, ao ver as nações emergentes, é entender com quais eles podem trabalhar e mudar a forma como influenciam a ordem mundial para que possam trabalhar juntas, e quais nações são mais revisionistas e podem ameaçar a ordem mundial como existe.

Brasilianismo – E onde o Brasil está nessa situação?
Harold Trinkunas – O Brasil é visto com uma frustração perene pelos criadores de política nos EUA, pois eles veem um país que parece muito com os EUA –uma nação grande, democrática e multiétnica, com história de integração e tamanho continental, com princípios fundamentais liberais definidos na própria Constituição. Quando o Brasil expressa valores assim em sua política exterior, os dois países se dão muito bem.

Mas há um outro lado nessa relação. O Brasil às vezes defende posturas diferentes, sem ter aliados ou inimigos, tratando os outros países de forma igualitária, com respeito à soberania, contrário ao intervencionismo. Essas aspirações por uma ordem global diferente deixam os EUA frustrados quando há algum problema internacional como na Líbia, na Síria, no conflito da Crimeia. É aí que está a discórdia entre EUA e Brasil. Mas a resposta para esse desacordo nunca é conflito, mas sim distanciamento. Os países se afastam um do outro em vez de entrarem em confronto. Então há momentos de esfriamento na relação.

Brasilianismo – Não se pode dizer que todos os países querem ter poder? Como o Brasil se diferencia de outros países nesse sentido?
David Mares – Nem todos os países têm aspirações de ser potência global. Na verdade, poucos países o fazem, pois é preciso ter os trunfos para ter esse tipo de influência. Mesmo que analisemos um caso extremo como o da Coreia do Norte, eles não estão tentando influenciar a governança global, estão apenas tentando conseguir o que precisam para si mesmos. Sua estratégia nuclear é baseada nisso, e não em uma mudança nas regras da ordem social.

O Brasil se diferencia disso desde o começo. Desde o começo do império, O Brasil sempre se viu como tendo direito a um lugar nos conselhos globais de ordem internacional. Isso é em parte por conta do seu tamanho, e parte porque em determinado momento da história o Brasil tinha uma situação política estável em comparação com o resto do continente. Mesmo quando a proclamação da república trouxe alguma instabilidade, o Brasil logo se reorganizou e os europeus reconheceram o brasil como um potencial grande ator internacional. O Brasil foi convidado para as conferências de Haia, e teve um papel importante ali.

Brasilianismo – Isso é uma forma de megalomania do Brasil? Que vantagens o país teria se tivesse menos aspirações globais?
Harold Trinkunas – Ao classificar o Brasil como uma potência emergente, estamos diferenciando o país das nações intermediárias, que estão satisfeitas com a ordem global como ela está –Itália, Dinamarca, Suécia–, países desenvolvidos que acham que o sistema global funciona bem para eles. E comparamos com países como a Índia, que compartilha com o Brasil a sensação de que atingiram seu status até agora apesar do sistema, e que teriam avançado ainda mais se houvesse uma ordem global diferente, que beneficiasse mais o sul global.

O Brasil não quer influenciar a ordem internacional por se achar mais importante do que é. Ele realmente acha que a ordem internacional tem aspectos negativos sobre a capacidade de se desenvolver do Brasil, e que uma ordem internacional diferente, na qual o Brasil tivesse mais voz, aceleraria o desenvolvimento do país.

David Mares – O Brasil e o sistema internacional se beneficiariam de uma maior influência do Brasil, se essa influência fosse usada de forma apropriada. O Brasil não quer desfazer o sistema, mas às vezes parece exagerar sua força, o que pode parecer negativo, e preocupa outros atores globais. Mas todas as regras têm impacto na distribuição de custos e benefícios do comportamento que está sendo avaliado por essas regras.Faz sentido achar que alguma modificação em algumas dessas regras ajudariam países em desenvolvimento, permitindo um desenvolvimento mais amplo. O Brasil se mete em problemas quando tenta dar um passo maior do que a perna, e alcançar mais do que consegue com seu nível de influência.

Brasilianismo – Em que situação isso aconteceu?
David Mares –
No lado da segurança, por exemplo. Acho que é ótimo que o Brasil não seja uma potência militar. Não estamos defendendo que o Brasil deva desenvolver capacidades nucleares ou equipamentos militares. Não achamos que o Brasil deva embarcar numa tentativa de desenvolvimento militar. Soft power é o caminho para o Brasil. Mas, no âmbito da segurança, a posição do Brasil em temas como a RWP (responsability while protecting), os esforços para desenvolver seus submarinos nucleares e transferências de tecnologia sem tanta supervisão internacional. São áreas às quais o Brasil não precisa ir, e que, por mais que o Brasil não seja o problema, poderia tornar mais fácil para outros países se tornarem problemas para a ordem mundial no futuro.

Harold Trinkunas – A crise recente na Ucrânia é um bom exemplo. O Brasil foi criticado pelas grandes democracias por não ter se colocado de forma mais enfática contra a anexação da Crimeia pela Rússia. Isso é algo que o Brasil tradicionalmente faria oposição, por ser a tomada de território à força, mas a resposta do Itamaraty foi dizer que havia um envolvimento anterior do Ocidente na Ucrânia mudando o regime, e que se o Ocidente não tivesse se envolvido, nao teria havido problema. O problema disso é que, mesmo que possa ser uma avaliação correta, não é uma resposta satisfatória nem para a vítima da agressão, que é a Ucrânia, nem para as democracias russas. Porque o Brasil tenta usar argumentos assim, que não satisfazem a ninguém, nem à vítima nem aos agressores, ele acaba não oferecendo soluções práticas para o problema imediato, e acaba não tendo poder de influência.

David Mares – E não é só na questão de segurança. Em termos econômicos, o Brasil pagou um preço caro por querer ter mais autonomia em seu desenvolvimento nacional. O mercosul e o Brasil não são competitivos, e se tornaram dependentes de commodities em vez de se integrar na economia global. Teria sido melhor para o Brasil, mas o país argumentou contra abordagens deste tipo

Brasilianismo – Vocês abrem o livro descrevendo como o Brasil melhorou seu perfil internacional até 2009, mas perdeu força alguns anos depois. O que deu errado?
Harold Trinkunas –
Precisamos voltar para entender porque a crise no Brasil tem um impacto profundo na sua influência internacional. É óbvio que a crise tem influência sobre a vida dos brasileiros por vários motivos, e demonstra uma fraqueza de algumas das suas instituições, com prevalência maior da corrupção e problemas do modelo econômico. Na dimensão internacional, como o Brasil enfatizou tanto o soft power em sua estratégia internacional, e como soft power é poder de atração, e não de força, isso faz com que as instituições domésticas sejam excepcionalmente importantes. Durante os anos de boom, de 2003 a 2011, o Brasil pareceu ter alcançado essa combinação de democracia, desenvolvimento, redução da desigualdade, crescimento da classe média. Um modelo que era muito atraente para outros países do mundo em desenvolvimento dando impulso à liderança brasileira em contraste com o modelo chinês ou o Consenso de Washington. O Brasil parecia ter conseguido juntar democracia e desenvolvimento. A crise atual quebrou isso, e faz parecer que o que país construía e mostrava ao mundo não era real.

Pessoalmente acho que o Brasil vai preservar muitos dos seus avanços, mesmo que eles demorem a se reorganizar. No curto prazo, a fraqueza das instituições brasileiras cortou sua influência internacional.

Brasilianismo – Como isso afeta a posição do Brasil no mundo?
David Mares –
O Brasil vai ter que voltar algumas casas no tabuleiro, mas não precisa começar tudo de novo. Muitos dos sucessos do Brasil no passado já estão no radar do resto do mundo de uma forma que não estavam antes. As pessoas vão estar acompanhando a recuperação brasileira e, quando isso acontecer, haverá uma maior aceitação de que o Brasil é um ator global importante. Isto considerando que o país mantenha sua democracia intacta e vai voltar a apostar na redução das desigualdades e no crescimento da classe média

Harold Trinkunas – A luta contra a corrupção vai se tornar um tema importante neste ponto. Dependendo de como a Justiça brasileira vai lidar com a corrupção vai ser acompanhada no resto do mundo e pode afetar sua influência internacional.

David Mares – O Brasil precisa aprender com seus erros do passado para poder se reerguer. Internamente, precisa pensar no seu modelo de desenvolvimento e das suas instituições, e internacionalmente em termos do foco em um grupo como IBSA em vez dos BRIC, apostando mais nas democracias para ter um apoio maior das outras potências globais, além de Rússia e China. O Brasil é uma democracia e é liberal, e acredita em direitos humanos e direitos civis, acredita em limites para o governo, são valores liberais que a China e a Rússia não têm. É nisso que eles precisam enfatizar no caminho de volta.

Brasilianismo – Qual o caminho a ser seguido imediatamente, então?
Harold Trinkunas –
Os próximos anos vão dizer muito sobre como o Brasil vai se restabelecer. No longo prazo, vemos que o Brasil tem progredido, mas precisamos ver se o Brasil vai conseguir manter os avanços das últimas décadas ao longo dos próximos anos. Há exemplos, como a governança da internet, fascinantes. O Brasil é um ator bem-sucedido nessa área graças ao impulso de liberalização de FHC. Isso criou os fundamentos para criar um Brasil muito conectado ao mundo, mais influente em política internacional, mesmo que as pessoas não deem atenção a isso no Brasil atualmente. É um bom exemplo de coisas feitas no nível doméstico que foram bem-sucedidas no longo prazo, dando mais influência ao país em nível global. Momentos de crise são oportunidades para reformas institucionais e contribuir para o país no longo prazo.

David Mares – Para a emergência internacional do Brasil é muito importante fazer as reformas políticas que permitam lutar contra a corrupção, e torná-la um tema menor no país. Governar o Brasil tem que ser mais fácil. Governar é muito difícil quando há tantos partidos. Isso é um problema real para o desenvolvimento do Brasil. Todas as políticas dependem de muita negociação com partidos diferentes. É um desafio tornar essas instituições mais funcionais.

Brasilianismo – Analistas internacionais dizem que a política brasileira e disfuncional. Concordam?
Harold Trinkunas –
Essa é uma palavra forte. O sistema tende a coalizões muito grandes. Em um contexto positivo, como o boom das commodities, mantém a coalizão com propinas e pagamentos. Não é preciso reforma quando se pode pagar pelo apoio. O sistema funcionou sob FHC, por exemplo, que conseguiu adotar políticas importantes para o desenvolvimento brasileiro.

David Mares – No Brasil, a eficiência do presidente muitas vezes se deu via corrupção. O sistema funcionou assim. A estrutura do país precisa mudar para que a corrupção deixe de ser uma forma de resolver a ineficiência do governo.

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Sobre o Autor

Daniel Buarque vive em Londres, onde faz doutorado em relações internacionais pelo King's College London (em parceria com a USP). Jornalista e escritor, fez mestrado sobre a imagem internacional do país pelo Brazil Institute da mesma universidade inglesa. É autor do livro “Brazil, um país do presente - A imagem internacional do ‘país do futuro’” (Alameda Editorial) e do livreto “Brazil Now” da consultoria internacional Hall and Partners, além de outros quatro livros. Escreve regularmente para o UOL e para a Folha de S.Paulo, e trabalhou repórter do G1, do "Valor Econômico" e da própria Folha, além de ter sido editor-executivo do portal Terra e chefe de reportagem da rádio CBN em São Paulo.

Sobre o Blog

O Brasil é citado mais de 200 vezes por dia na mídia internacional. Essas reportagens e análises estrangeiras ajudam a formar o pensamento do resto do mundo a respeito do país, que tem se tornado mais conhecido e se consolidado como um ator global importante. Este blog busca compreender a imagem internacional do Brasil e a importância da reputação global do país a partir o monitoramento de tudo o que se fala sobre ele no resto do mundo, seja na mídia, na academia ou mesmo e conversas na rua. Notícias, comentários, análises, entrevistas e reportagens sobre o Brasil visto de fora.

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