Brasil tem imagem de exótico e sensual desde o século 16, diz pesquisadora
Daniel Buarque
15/02/2017 07h38
Ao assistir a um documentário recente sobre o Rio de Janeiro na TV britânica, a professora Vivien Kogut Lessa de Sá, do departamento de estudos de português e espanhol da Universidade de Cambridge, lembrou imediatamente da carta de Pero Vaz de Caminha, de 1500, e de outros relatos de viajantes europeus ao Brasil do século 16.
Para ela, muito do que há de imagem do Brasil hoje, especialmente quando se trata de estereótipos como exotismo e sensualidade, vem sendo construído e realimentado desde aquela época.
"Minha impressão é que ainda prevalece o exotismo quando se retrata o Brasil na Europa. Ainda se ressalta a 'proverbial beleza das mulheres brasileiras', a afabilidade e espontaneidade do povo, um ar singularmente relaxado e as onipresentes belezas naturais. E ao lado disso há um subtexto de bestialidade, de primitivismo, que inspira encantamento e repulsa ao mesmo tempo", disse Lessa de Sá, em entrevista ao blog Brasilianismo.
Leia também: Imagem internacional do Brasil começou a se formar na chegada dos europeus
Esta é a segunda e última parte da entrevista de Lessa de Sá ao blog Brasilianismo, em que ela aborda o surgimento dos estereótipos estrangeiros a respeito do Brasil e a forma como parte dessas imagens continuam ligadas ao país na mente europeia até os dias de hoje.
Clique aqui para ler também a primeira parte da entrevista, em que ela trata da importância dos relatos de viajantes ingleses para conhecer melhor o Brasil das primeiras décadas após a chegada dos portugueses.
Brasilianismo – Descrições de viajantes no século 16 ajudaram a formar uma primeira imagem internacional do Brasil. De que forma os relatos de viajantes ingleses se diferenciam dos outros relatos (especialmente o de portugueses, como Pero Vaz de Caminha)? Há algo de específico na forma como só ingleses retratavam o Brasil nesta época?
Vivien Kogut Lessa de Sá – Analisando os relatos foi possível identificar três fases distintas dos interesses ingleses no Brasil no primeiro século da colônia: uma primeira fase de exploração, uma segunda de comércio, e uma última, após o rompimento entre a Espanha e a Inglaterra, e a anexação de Portugal à coroa Espanhola em 1581, de pirataria.
A imagem transmitida do Brasil, portanto, vai depender do momento: Nas primeiras viagens sobressai a riqueza natural da terra, o exotismo dos indígenas; nas viagens comerciais há ênfase nas promessas de riqueza no comércio do açúcar, por exemplo, e notícias vagas sobre possibilidades de ouro; finalmente, na última fase, há uma atitude predatória, frequentemente acompanhada de um verdadeiro ódio aos portugueses, vistos como indignos de serem 'donos da terra'. O relato de James Lancaster, que atacou e sitiou o Recife em 1595, é um ótimo exemplo.
Uma coisa interessante é ver como os relatos ingleses, ao contrário de outros relatos europeus dessa época muito mais conhecidos entre nós, não envolvem uma leitura religiosa daquilo que é testemunhado (como fazem Hans Staden, Jean de Léry ou André Thevet, ou mesmo dos missionários jesuítas) ou uma intenção colonizadora (como alguns relatos portugueses, principalmente Gabriel Soares de Sousa).
Caminha nos deixou um relato em muitos aspectos anódino, diferente de grande parte dos relatos de viagem ao Brasil, sobretudo de portugueses. Parece prevalecer uma atmosfera de mútuo receio, mas que rendunda em um contato benigno, sem conflitos aparentes. Isto destoa das descrições que serão feitas do índios mais tarde por portugueses, sobretudo por colonos. A relação com os povos indígenas será pautada por violência e opressão, como se sabe. Os ingleses buscaram explorar isto ao máximo, sempre aludindo à crueldade dos povos ibéricos com os povos nativos da América, até para justificar a sua inadequação como colonizadores e a sustentar a sua desumanidade.
Brasilianismo – Quem eram os visitantes ingleses no século 16, e por que vinham ao Brasil?
Vivien Kogut Lessa de Sá – Eram de origens e tipos os mais variados: havia navegadores, comerciantes, marinheiros, médicos de bordo, soldados. A maioria via a viagem ao Brasil como uma promessa de enriquecimento –fosse por comércio com os colonos e os índios, fosse pela perspectiva de polpudos butins.
Brasilianismo – Quanto dos relatos do século 16 continua atual na forma como o Brasil é interpretado no exterior?
Vivien Kogut Lessa de Sá – Esta é uma pergunta interessante. Minha impressão é que ainda prevalece o exotismo quando se retrata o Brasil na Europa. Ainda se ressalta a "proverbial beleza das mulheres brasileiras", a afabilidade e espontaneidade do povo, um ar singularmente relaxado e as onipresentes belezas naturais. E ao lado disso há um subtexto de bestialidade, de primitivismo, que inspira encantamento e repulsa ao mesmo tempo.
Outro dia assisti a um documentário inglês sobre o Rio (Rio 40 Degrees) que contém tudo isso, embora não se possa dizer que, estritamente, não represente muito do Rio. Mas há uma ênfase enorme nestes estereótipos –a hiper sensualidade e sexualidade, a falta de vergonha, a extroversão alegre, um certo descontrole. Me lembrou demais a carta do Caminha– all over again. E acho que nós brasileiros também fazemos esta leitura de nós mesmos e lançamos mão dela quando nos convém e, às vezes, sem nem percebermos.
Brasilianismo – Na entrevista ao History Hub, você fala também dos efeitos dos primeiros relatos na formação da imagem do Brasil, e menciona a descrição dos índios como exagerada, inclusive na questão da sensualidade. A sensualidade continua sendo um forte estereótipo do Brasil no exterior. Pode-se traçar a formação de algum estereótipo do Brasil a um ponto tão antigo assim?
Vivien Kogut Lessa de Sá – Acredito que sim. Acho que ficou um estereótipo que se retro-alimenta.
Se você lê esses primeiros relatos (Caminha, Vespucci), há uma ênfase enorme na sensualidade –inocente para Caminha, e pervertida para Vespucci. Mas isto é o resultado óbvio do maior choque produzido no encontro entre os europeus e os habitantes da América tropical: a nudez do indígena.
Para os europeus, o vestuário não servia somente para "cobrir as vergonhas", era o maior indicador de identidade: a roupa designava gênero, classe, profissão, nacionalidade, status social, idade, etc. Para os europeus, uma sociedade despida significava uma sociedade em que estavam ausentes os principais elementos ordenadores: hierarquia, riqueza, controle.
É sintomático que esta seja a primeira impressão dos índios que se acha em quase todos os relatos, desde Colombo: as primeiras palavras sobre os indígenas serão sempre "andam nus", seguidas da cor da pele. Fica aí impressa, até hoje, a imagem de que uma das maiores características da América tropical é precisamente o seu despudor.
Brasilianismo – Outro ponto que você tocava era a descrição que se fazia dos índios nesses primeiros relatos. Qual a relevância da descrição desta época no tratamento recebido pelos indígenas ao longo de séculos?
Vivien Kogut Lessa de Sá – No relato do Knivet, por exemplo, é sintomático que ele só se refira aos índios como "canibais" ou "selvagens", mesmo quando parece não levar em conta a conotação destes termos.
Ele naturaliza no seu discurso a visão do indígena como comedor de homens e indivíduo incivilizado, embora o próprio Knivet tivesse andado nu entre os índios, e o único exemplo de amizade que narra é entre ele e um índio.
O encontro com o habitante nativo da América foi um dos eventos mais desestabilizadores do período dos descobrimentos e acho que, de certa forma, tem consequências até hoje.
O encontro continua vivo e trágico, basta ler nos jornais notícias de choques em lugares remotos do Brasil entre índios e madeireiros, latifundiários, borracheiros e grileiros. Em primeiro lugar as notícias só aparecem perifericamente no jornal, embora normalmente tragam atrocidades e violações. Mas mais importante é o tipo de comentário que atraem dos leitores: um tratamento do índio que em nada se diferencia de coisas que já se via no século 16. A única diferença é que hoje o índio está à beira da extinção.
Sobre o Autor
Daniel Buarque vive em Londres, onde faz doutorado em relações internacionais pelo King's College London (em parceria com a USP). Jornalista e escritor, fez mestrado sobre a imagem internacional do país pelo Brazil Institute da mesma universidade inglesa. É autor do livro “Brazil, um país do presente - A imagem internacional do ‘país do futuro’” (Alameda Editorial) e do livreto “Brazil Now” da consultoria internacional Hall and Partners, além de outros quatro livros. Escreve regularmente para o UOL e para a Folha de S.Paulo, e trabalhou repórter do G1, do "Valor Econômico" e da própria Folha, além de ter sido editor-executivo do portal Terra e chefe de reportagem da rádio CBN em São Paulo.
Sobre o Blog
O Brasil é citado mais de 200 vezes por dia na mídia internacional. Essas reportagens e análises estrangeiras ajudam a formar o pensamento do resto do mundo a respeito do país, que tem se tornado mais conhecido e se consolidado como um ator global importante. Este blog busca compreender a imagem internacional do Brasil e a importância da reputação global do país a partir o monitoramento de tudo o que se fala sobre ele no resto do mundo, seja na mídia, na academia ou mesmo e conversas na rua. Notícias, comentários, análises, entrevistas e reportagens sobre o Brasil visto de fora.