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Professora de Cambridge estuda relatos ingleses no Brasil dos secs. 16 e 17

Daniel Buarque

14/02/2017 07h26

Poucos anos depois do registro do mais conhecido relato sobre o Brasil na época em que os portugueses chegaram ao território americano pela primeira vez, pelas mãos de Pero Vaz de Caminha, em 1500, a então colônia portuguesa também foi visitada por viajantes ingleses. Estas viagens resultaram em narrativas com um olhar diferente daquele do colonizador português, que permitem uma interpretação menos conhecida sobre o Brasil de 500 anos atrás.

A professora Vivien Kogut Lessa de Sá, de Cambridge, em entrevista ao TV Escola

Cartas, diários e outros de depoimentos desses ingleses que foram ao Brasil nos séculos 16 e 17 são foco do trabalho da pesquisadora Vivien Kogut Lessa de Sá, do departamento de estudos de português e espanhol da Universidade de Cambridge, no Reino Unido. São documentos que ficaram desconhecidos do público brasileiro, e que ajudaram a formar na Europa uma primeira imagem internacional do que viria a ser o Brasil.

Leia também: Imagem internacional do Brasil começou a se formar na chegada dos europeus

Lessa de Sá traduziu e editou com a pesquisadora Sheila Hue o livro "As Incríveis Aventuras e Estranhos Infortúnios de Anthony Knivet" (Zahar), escrito por um desses viajantes que viveu uma década no Brasil desta época. As duas agora reuniram mais 12 relatos do Brasil sob o olhar inglês nos séculos 16 e 17, que deve ser publicado como um novo livro.

Segundo a pesquisadora de Cambridge, são relatos que descrevem a terra recém encontrada por europeus e que deixam entrever mais do próprio autor do que da realidade que ele busca relatar. "Nesses casos o relato, enquanto busca narrar eventos e descrever características da nova terra, acaba por traduzir ansiedades, desejos e fantasias do próprio narrador, que acabam determinando o teor e forma de suas observações", disse, em entrevista ao blog Brasilianismo, por email.

Esta é a primeira parte da entrevista de Lessa de Sá ao blog Brasilianismo, em que ela trata da importância dos relatos de viajantes ingleses para conhecer melhor o Brasil das primeiras décadas após a chegada dos portugueses –a segunda parte da entrevista será publicada ao longo da semana.

Brasilianismo – Você está desenvolvendo um novo livro, com a pesquisadora Sheila Hue, sobre visitantes ingleses ao Brasil no século 16. O que pode me dizer sobre ele? O que descobriram de interessante?

Vivien Kogut Lessa de Sá – Este foi um projeto idealizado pela Sheila Hue há alguns anos, depois que trabalhamos juntas numa edição brasileira do relato do inglês Anthony Knivet, que saiu publicada em 2007 pela Zahar Editores. Trata-se de uma coleção de 12 relatos de viajantes ingleses que estiveram no Brasil entre o século 16 e o início do século 17. O título é "Viajantes Ingleses no Brasil: 1526-1608" e por ora estamos à procura de uma editor, já que não foi possível manter o projeto com a editora de origem.

A maioria destes relatos –alguns na forma de cartas, outros de diários, outros de depoimentos– permanence desconhecida do público brasileiro, ou porque nunca foi traduzida ou porque permaneceu oculta em meio a compêndios de viagem publicados na Inglaterra no século 17 e considerados (erradamente) de pouco interesse para assuntos brasileiros.

Brasilianismo – No que os relatos se diferenciam, ou o quanto avançam, em relação ao relato já conhecido de Knivet?

Vivien Kogut Lessa de Sá – Como mencionei, os relatos pertencem a gêneros diversos e foram preparados com intenções também diversas. O relato de Knivet foi preparado provavelmente com vistas a algum ganho financeiro, era uma época em que estes relatos valiam dinheiro, quando não poderiam redundar em favores. Knivet tinha retornado depois de 9 anos fora, seu pai morrera e ele não tinha lugar imediato naquele mundo.

Mas na nossa coletânea há, por exemplo, cartas trocadas entre comerciantes ingleses em Londres e um agente inglês que foi para o Brasil para 'fazer sua fortuna', casou-se com uma rica herdeira e pretendia iniciar uma rota comercial entre Santos e Londres. Na verdade, durante um período que vai já desde a década de 1530 a 1580, as empresas marítimas inglesas para o Brasil eram majoritariamente ligadas a comércio.

Alguns desses relatos deixam entrever mais do próprio autor do que da realidade que ele busca relatar –como é o caso por exemplo, do navegador Richard Hawkins, que era um observador refinado, ou de Thomas Griggs, que foi tesoureiro numa viagem para lá de desastrada, em 1580. Nesses casos o relato, enquanto busca narrar eventos e descrever características da nova terra, acaba por traduzir ansiedades, desejos e fantasias do próprio narrador, que acabam determinando o teor e forma de suas observações.

Brasilianismo – Você está estudando um manuscrito roubado do Brasil sobre o qual vem pesquisando há anos, a "Doutrina Cristaa na Linguoa Brasilica". Como está esta pesquisa?

Vivien Kogut Lessa de Sá – Este manuscrito tem uma história fascinante, típica das incríveis trocas culturais que marcaram o século 16. Ele foi roubado por um poeta elizabetano que integrava a mesma expedição corsária em que viajou Anthony Knivet. Quando os ingleses atacaram Santos em 1592, se instalaram no Colégio dos Jesuítas e passaram dois meses saqueando a cidade. Enquantos os outros membros da expedição vasculhavam as celas do colégio em busca de riquezas minerais, o nosso poeta foi até a biblioteca e, como ele mesmo depois escreveu, roubou de lá alguns volumes.

Foi um dos poucos sobreviventes a retornar da aventura e, no fim da vida, doou o manuscrito para uma biblioteca inglesa. A ironia é que foi este roubo que acabou garantindo a preservação do manuscrito. Trata-se de um catecismo bilíngue, em português e Tupi, produzido pelos companheiros de Anchieta no projeto de conversão dos índios das capitanias do sul. A edição seria importantíssima para que o público brasileiro tivesse acesso a este importante documento, mas ainda estou em busca de apoio para disponibilizá-la.

Brasilianismo – Qual a relevância deste manuscrito?

Vivien Kogut Lessa de Sá – O manuscrito é provavelmente o mais antigo do seu tipo de que temos notícia. O trabalho missionário de Anchieta se baseou em grande parte em seu uso da "língua geral", uma língua franca Tupi, que ele aprendeu e ensinou e cuja gramática pioneira ele preparou para ajudar os missionários na conversão. Portanto o manuscrito nos permite verificar o trabalho de Anchieta e também os percalços conceituais que os jesuítas devem ter enfrentado na hora de transpor os ensinamentos católicos para o universo linguístico dos povos Tupi-Guarani. Acho que o manuscrito é de interesse histórico, etnográfico e linguístico, mas também põe em relevo a história não contada do tráfico atlântico de livros e manuscritos roubados.

Ouça entrevista de Lessa de Sá ao History Hub (em inglês)

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Sobre o Autor

Daniel Buarque vive em Londres, onde faz doutorado em relações internacionais pelo King's College London (em parceria com a USP). Jornalista e escritor, fez mestrado sobre a imagem internacional do país pelo Brazil Institute da mesma universidade inglesa. É autor do livro “Brazil, um país do presente - A imagem internacional do ‘país do futuro’” (Alameda Editorial) e do livreto “Brazil Now” da consultoria internacional Hall and Partners, além de outros quatro livros. Escreve regularmente para o UOL e para a Folha de S.Paulo, e trabalhou repórter do G1, do "Valor Econômico" e da própria Folha, além de ter sido editor-executivo do portal Terra e chefe de reportagem da rádio CBN em São Paulo.

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O Brasil é citado mais de 200 vezes por dia na mídia internacional. Essas reportagens e análises estrangeiras ajudam a formar o pensamento do resto do mundo a respeito do país, que tem se tornado mais conhecido e se consolidado como um ator global importante. Este blog busca compreender a imagem internacional do Brasil e a importância da reputação global do país a partir o monitoramento de tudo o que se fala sobre ele no resto do mundo, seja na mídia, na academia ou mesmo e conversas na rua. Notícias, comentários, análises, entrevistas e reportagens sobre o Brasil visto de fora.

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