Brasil tem segurança pública militarizada e ainda vive legado da ditadura
Daniel Buarque
28/04/2015 14h24
Policial anda pelas ruas e checa moradores para garantir a segurança durante uma operação no complexo de favelas da Maré no Rio de Janeiro (Ricardo Moraes/ Reuters)
Nem os militares mais conservadores têm levado a sério os pedidos de alas mais radicais dos protestos contra o governo Dilma Rousseff para uma intervenção do Exército na política nacional. Ainda assim, as relações entre civis e militares no país continuam marcadas pelo legado da ditadura que comandou o Brasil por mais de duas décadas, o que se manifesta fortemente na forma como é feita a segurança pública no país, segundo análise do pesquisador alemão Christoph Harig.
"A partir de uma perspectiva externa, certamente parece estranho (para dizer o mínimo) que o Clube Militar ainda esteja comemorando o aniversário do golpe de Estado ou que as Forças Armadas ainda se refiram ao golpe de 1964 como 'revolução democrática'", disse Harig, em entrevista ao Blog Brasilianismo.
Depois de trabalhar com temas relacionados ao Brasil no Instituto Alemão para Assuntos Internacionais e de Segurança (SWP), Harig se mudou para Londres, onde estuda a militarização da segurança pública brasileira no programa de doutorado do Brazil Institute do King's College. Ele é autor do artigo "Synergy effects between MINUSTAH and public security in Brazil" (Efeitos da sinergia entre a Minustah e a segurança pública no Brasil), publicado na revista acadêmica Brasiliana, em que estuda como as missões no Haiti influenciam a segurança pública no Brasil.
Segundo ele a ligação entre militares e policiais distanciam o país do ideal de militantes que pedem a desmilitarização das polícias. "O crescente uso de militares em tarefas de polícia durante as 'operações para manutenção da lei e da ordem' está influenciando significativamente a segurança pública no Brasil", disse.
Leia abaixo a entrevista completa, em que ele fala ainda sobre programas de pacificação e a segurança dos Jogos Olímpicos do Rio em 2016.
Brasilianismo – Como você vê a experiência dos militares brasileiros com segurança púlica à luz das instabilidades políticas atuais que levaram algumas pessoas mais radicais a pedirem uma intervenção militar na política brasileira?
Christoph Harig – De modo geral, relações civis-militares no Brasil não são definitivamente livres de legados do regime militar. A partir de uma perspectiva externa, certamente parece estranho (para dizer o mínimo) que o Clube Militar ainda esteja comemorando o aniversário do golpe de Estado ou que as Forças Armadas ainda se refiram ao golpe de 1964 como "revolução democrática". Além disso, comparando os níveis extremamente baixos nível de confiança da população nos partidos políticos ou o Congresso com o prestígio elevado das Forças Armadas cria uma imagem desfavorável da forma como os cidadãos avaliam o desempenho de suas instituições democráticas.
No entanto, não vejo uma ameaça iminente de intervenção militar na política nem uma conexão direta entre as operações militares e alguns pedidos reacionários para uma intervenção militar. Primeiro de tudo, gostaria de dizer que os mais altos escalões das Forças Armadas aceitam há muito a democracia como única regra do jogo. Eles ainda podem exercer a sua influência quando estão em causa interesses institucionais (como quando Lula tentou abolir a Lei de Anistia), mas não acho que os militares são muito suscetíveis aos apelos para uma intervenção. Mesmo a voz mais conservadora dos militares, o Clube Militar, publicou uma nota rejeitando apelos a uma intervenção militar depois da vitória de Dilma nas eleições.
Ações militares internas, não só durante a pacificação, mas também durante as eleições ou mega-eventos, acontecem após pedidos de autoridades civis eleitas, estão constitucionalmente permitidas e, portanto, não constituem um envolvimento político ameaçador pelos militares. Pode-se certamente argumentar que cada vez mais contando com tropas para a segurança interna não ajuda a reduzir ainda mais o poder de poder de barganha política dos militares. No entanto, eu não iria considerar a prática como ameaça à democracia.
Brasilianismo – O uso da força por parte da polícia no Brasil levou alguns críticos a defender a desmilitarização da polícia no país. A partir de seu artigo, parece que o oposto está acontecendo, e que a polícia está se tornando mais próxima dos militares. Qual é a sua opinião sobre isso?
Christoph Harig – À luz do problema da segurança pública atual, o que parece estar acontecendo no Brasil no momento é o oposto do que pedem as pessoas que apóiam a desmilitarização. Fazer uma reforma das forças policiais estaduais exigiria mudanças constitucionais e um grande esforço político. Neste momento, diria que a resistência de muitos grupos como federações de policiais, governos estaduais, os eleitores conservadores e sua crescente número de representantes no Congresso seria forte o suficiente para permitir que o projeto de desmilitarização fosse adiante.
Em vez de abordar a reforma das forças policiais existentes, o governo federal criou outra força policial militarizada: a Força Nacional, que deveria ajudar os Estados individuais em crises de segurança pública. No entanto, o seu bom funcionamento dependeria de uma emenda constitucional que ainda está presa no Congresso. O uso de soldados em operações de GLO, não só durante Pacificação, é ainda mais contraditório com a proposta de desmilitarização.
Brasilianismo – Nos últimos meses foram registrados vários protestos contra a operação de pacificação no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro. O que você acha deu certo e o que deu errado nos programas de pacificação no Rio?
Christoph Harig – O governo do Rio estava certo na tentativa de reformar a abordagem da Polícia Militar e melhorar os serviços do Estado em favelas. Da mesma forma, eles pareciam tomar cuidado com algumas questões que levaram ao fracasso das tentativas anteriores de introduzir unidades de policiamento comunitário no Rio, que sofreram com a falta de apoio político e forte resistência de dentro da PM. Para ser justo: mesmo que a implementação do programa de pacificação tivesse sido quase perfeito, seria um exagero esperar que as UPPs acabassem imediatamente com os problemas de todas as favelas envolvidas.
Ainda assim, a aplicação dos programas obviamente falhou em vários aspectos, particularmente no que diz respeito a melhorias prometidas nos serviços públicos. Mesmo que alguns moradores da favela aceitem uma fase de transição, em que o Estado tenta assumir o controle do território das gangues, seria preciso perceber posteriormente uma melhoria notável em termos de acesso aos cuidados de saúde, educação e outros serviços. Caso contrário, as tentativas de construir uma relação de confiança entre agentes do Estado e os cidadãos são fúteis. O teleférico no Alemão mostra, além disso, como alguns investimentos que foram feitos não abordaram as necessidades mais urgentes de moradores locais.
Além disso, as UPPs aparentemente não deram fim à violência endêmica e à corrupção na PM. Situações em que o Exército instrui a UPP em técnicas de patrulhamento e envolvimento com a comunidade local no Complexo da Maré destacam um problema elementar: a aparente falta de treinamento adequado para o policiamento comunitário, que é uma grande preocupação não só entre os moradores, mas também entre os próprios policiais. Esta é uma questão que não se limita ao Rio, no entanto, pois a educação e formação das forças de polícia militar do Brasil continuam a ser pouco compatível com a construção de relações de amizade com os cidadãos. Além disso, a jurisdição militar ainda leva a uma situação de impunidade generalizada para policiais que cometem abusos. Eu diria que estes problemas fundamentais das UPPs não serão resolvidos sem uma grande reforma do sistema policial no Brasil.
Brasilianismo – Seu artigo argumenta que a "policialização" dos militares tem repercussões para missões internas de manutenção da ordem. Como podemos entender o que está acontecendo no Alemão através esse argumento?
Christoph Harig – O crescente uso de militares em tarefas de polícia durante a "operações para manutenção da lei e da ordem" (GLO) está influenciando significativamente a segurança pública no Brasil. A pedido de governos estaduais, o governo federal pode enviar as Forças Armadas para ajudar na segurança pública. Embora estas medidas devam ser restritas em termos de tempo e espaço e devam só ser oficialmente permitidas quando as forças policiais revelarem-se incapazes de lidar com alguma situação, os desenvolvimentos recentes mostram que os políticos federais e estaduais são bastante flexíveis ao interpretar estas regras. Por exemplo, o governo federal emitiu uma GLO "preventiva" para a época da Copa do Mundo, e governos estaduais têm sido acusados de banalizar os pedidos para a assistência federal.
No caso do Alemão e da Penha, o mandato para as Forças Armadas para ficar tem sido prorrogado repetidamente. O que é surpreendente é que algumas publicações científicas alegam que os moradores dessas áreas, embora certamente não dêem calorosas boas-vindas à ocupação militar, ainda preferiam a presença de soldados a policiais militares, amplamente vistos como corruptos e abusivos.
As Forças Armadas tentaram manter seus soldados longe de serem tentados pela corrupção por contingentes que eram trocados com frequência. Embora, sem dúvida, seja uma medida bastante eficaz em termos de prevenção da corrupção, esta ação também mostra que os militares não podem assumir o programa de pacificação no longo prazo, já que ele deve estabelecer laços entre as agências comunitárias e estaduais.
Apesar do esforço prolongado para estabilizar a área por meios militares, órgãos de segurança pública, aparentemente, não têm sido capazes de estabelecer efetivamente o controle. Essa falta de prestação de serviços à população durante e depois da ocupação militar, e os baixos níveis de confiança dos cidadãos no programa de pacificação criaram um campo fértil para que traficantes tentassem "recuperar" seu território.
Brasilianismo – Seu trabalho fala sobre as capacidades adquiridas por soldados, que vão servir mais para missões internas do que para as futuras operações de paz. Como você acha que este sinergias você descreve em seu artigo vão afetar a ação dos militares para a manutenção da paz durante as Olimpíadas de 2016 no Rio?
Christoph Harig – Em meu artigo, me retiro às operações que antecedem os Jogos Olímpicos, como a atual Força de Pacificação no Complexo da Maré. No entanto, o governo federal também está confiando fortemente nas Forças Armadas para proporcionar segurança durante os Jogos Olímpicos. Nas operações de GLO, como durante a Copa do Mundo de 2014 e outros eventos de grande porte, os militares estão autorizados a assumir o comando das forças policiais envolvidas e, assim, torna-se o principal fornecedor de segurança pública.
O Ministério da Defesa se referiu explicitamente à experiência adquirida por militares durante grandes eventos anteriores. O governo já anunciou que 38 mil soldados vão ser enviados para a proteção dos Jogos, durante os quais eles vão executar operações conjuntas com várias forças policiais e agências de inteligência. Além disso, várias competições vão ter lugar em instalações militares, e é óbvio que os soldados vão ser uma parte muito visível da segurança pública durante os Jogos Olímpicos.
Sobre o Autor
Daniel Buarque vive em Londres, onde faz doutorado em relações internacionais pelo King's College London (em parceria com a USP). Jornalista e escritor, fez mestrado sobre a imagem internacional do país pelo Brazil Institute da mesma universidade inglesa. É autor do livro “Brazil, um país do presente - A imagem internacional do ‘país do futuro’” (Alameda Editorial) e do livreto “Brazil Now” da consultoria internacional Hall and Partners, além de outros quatro livros. Escreve regularmente para o UOL e para a Folha de S.Paulo, e trabalhou repórter do G1, do "Valor Econômico" e da própria Folha, além de ter sido editor-executivo do portal Terra e chefe de reportagem da rádio CBN em São Paulo.
Sobre o Blog
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