É impossível explicar a estrangeiros a morte do menino de 10 anos no Rio
Daniel Buarque
09/04/2015 11h27
O pesquisador brasileiro Vinicius Mariano de Carvalho tem se especializado em explicar a estudantes de diferentes partes do mundo o inexplicável.
Professor do Instituto Brasil do King's College de Londres, um departamento multidisciplinar voltado a estudos sobre o país, ele é especialista em temas relacionados a segurança pública e violência, e muitas vezes cabe a ele o trabalho de traduzir aos estrangeiros a realidade brasileira nessa área – mesmo quando essa realidade é a morte de Eduardo de Jesus, de apenas 10 anos de idade, com um tiro de fuzil disparado pela polícia do Rio de Janeiro no Complexo do Alemão.
"O caso da criança morta no Alemão não é explicável", disse, em entrevista ao Blog Brasilianismo, direto da capital inglesa.
Ao longo da última semana, a morte de Eduardo passou a reforçar internacionalmente a imagem de violência do Brasil, rompendo com o imaginário positivo que as UPPs chegaram a criar em anos recentes.
"É difícil para nós, que falamos no exterior sobre policiamento no Brasil, explicar como funcionam as polícias no Brasil. É difícil fazer entender o que é uma polícia militar estadual, uma Polícia Civil, uma Polícia Federal, a Força Nacional, Exército na rua. Temos muitos agentes armados e a coordenação entre eles é muito pequena", explicou.
Antes de trabalhar na universidade inglesa, Carvalho coordenou o programa de estudos brasileiros na Aarhus University, na Dinamarca. Sua formação passa por estudos de literatura e pela atuação como tenente do Exército. Ele é também o editor-chefe da revista de estudos acadêmicos "Brasiliana".
Segundo o pesquisador, falta no Brasil uma mentalidade de segurança pública que veja os moradores da cidade como cidadãos, e não como forças adversas. "Só acho que vai haver modificação se os atores locais, cidadãos das comunidades, passarem a ter uma voz mais ativa no processo de segurança pública."
Leia abaixo a entrevista completa.
Brasilianismo – Qual a visão internacional das UPPs e dos conflitos atuais no Complexo do Alemão?
Vinicius Mariano de Carvalho – Estudiosos de questões de segurança pública em todo o mundo tinham essa leitura crítica das UPPs desde o princípio.
Entre o público em geral, temos que pensar que estrangeiros que estavam indo fazer turismo na favela acreditando na pacificação, e agora essa imagem do turismo seguro já está desgastada. Não é mais como após a ocupação militar, com aquele entusiasmo da imprensa de que finalmente havíamos expulsado os bandidos. Essa imagem está comprometida, até porque era uma imagem que não condizia com a realidade.
Brasilianismo – E daqui para a frente, o que se pode fazer para garantir a segurança nessas comunidades?
Vinicius Mariano de Carvalho – O que temos é o estabelecimento de um princípio perverso. Usar as forças armadas na Maré é repetir o que aconteceu com o Alemão. Mas isso não pode virar um procedimento padrão. Criou-se um paradigma problemático de que sempre que há crises de segurança pública pode-se chamar as forças armadas. Temos um governo de esquerda, que lutou historicamente contra o uso de forças armadas como força de polícia, mas que emprega sistematicamente as forças armadas como policiamento. Precisamos reorganizar a forma como entendemos segurança pública e polícia.
É difícil para nós, que falamos no exterior sobre policiamento no Brasil, explicar como funcionam as polícias no Brasil. É difícil fazer entender o que é uma Polícia Militar estadual, uma Polícia Civil, uma Polícia Federal, a Força Nacional, Exército na rua. Temos muitos agentes armados e a coordenação entre eles é muito pequena. Falta uma mentalidade de segurança pública que veja os outros moradores da cidade como cidadãos, e não como forças adversas.
Só acho que vai haver modificação se os atores locais, cidadãos das comunidades, passarem a ter uma voz mais ativa no processo de segurança pública.
Brasilianismo – Quando uma criança morre com tiro de fuzil da polícia, fica ainda mais complicado isso.
Vinicius Mariano de Carvalho – Exato. É preciso repensar a própria atuação das polícias. é bonito de falar em cortar na carne, mas não é simplesmente agora prender os policiais que fizeram isso e expulsá-los da corporação. Isso não resolve. É complicado falar em instalar unidade pacificadora se o processo começa com as forças mais robustas da polícia, como Bope e força de choque. Essas forças não são de policiamento, não são criadas para interagir com a comunidade e seus procedimentos são necessários quando não há mais espaço para dialogar.
O caso da criança morta no Alemão não é explicável.
Qualquer comparação é muito problemáticas, mas pensando comparativamente, não se vêem policiais andando com fuzis comumente pelo meio da rua em Londres, por exemplo. Criamos no Brasil essa convivência com a força e a violência que nos parece estranho pensar que policial não precisa andar muito armado.
A percepção que temos da violência no Brasil é contaminada pelo uso constante de violência pelo estado e pela população. A polícia é um reflexo da sociedade também. Ela não é um caso à parte.
Brasilianismo – O sistema das UPPs está em xeque?
Vinicius Mariano de Carvalho – Não é que as UPPs estejam em crise, mas que todas as políticas de segurança pública estão sempre em crise. No que diz respeito a segurança pública, todo sistema estará sempre em xeque.
Não é possível, em segurança pública de megacidades, se criar um sistema aplicável em todos os locais em qualquer espaço de tempo. A dinâmica de segurança pública é muito rápida, não é estanque, e não há uma receita para o problema de segurança pública no Brasil. Existe espaço para muitas soluções diferentes.
Nesse sentido, a ideia das UPPs é uma dessas soluções possíveis. A primeira UPP, no Morro Dona Marta é um exemplo de sucesso de uma política de segurança pública. O problema é que temos a tendência de buscar receitas e soluções que possam ser reaplicadas em qualquer lugar e que sempre dêem certo, especialmente quando se usa isso para fins políticos.
O projeto das UPPs, hoje, é um projeto já envelhecido, que tem suas raízes no policiamento comunitário, e que funcionou bem quando foi implementado na primeira vez porque foi pensado em um sistema específico, para um contexto específico. No momento em que ele se torna sistemático, começa a sofrer dos males da falta de flexibilidade para realidades diferentes.
Esse é o problema do Rio hoje. Achamos que as UPPs eram uma receita, que criava uma educação de polícia pacificadora com preocupação com direitos humanos; criamos uma divisão dentro da polícia, e colocamos esse policiamento com o nome assustador de "pacificador". Isso gera um novo problema, pois imaginamos uma outra polícia na UPP, separada da polícia tradicional, que é algo que não pode acontecer. Assim, estamos criando um Frankenstein. Falar em polícia "pacificadora" é admitir que existe uma questão bélica a ser enfrentada.
No caso do Alemão, houve uma operação militar que seguiu moldes de doutrinas e táticas que estão sendo desenvolvidas em várias partes do mundo, com sinergias com táticas usadas por tropas brasileiras no Haiti. O princípio é simples: em um primeiro momento, forças militares garantem a securização de um território para que em continuação agentes do estado trabalharam para reconfigurar o tecido da cidadania daquelas áreas. A ocupação militar é uma situação provisória, pois uma vez que o estado reestabeleça a possibilidade do exercício da cidadania, não seria mais preciso uma força de ocupação militar.
No princípio houve uma preocupação grande de criar um espectro de volta à normalidade. Agora temos o recrudescimento da violência em uma área que estava pacificada, e isso leva ao questionamento sobre a ação do estado e o envolvimento da comunidade nas decisões a serem tomadas e relação a esta pacificação.
Não existe possibilidade de se falar de politicas de pacificação sem o envolvimento de atores locais. Por isso o receituário de pacificação vindo de fora para dentro vai funcionar sempre parcialmente, pois não leva em conta os atores que vivem em cada comunidade e que a fazem diferente.
Falar em ocupação e reocupação do Alemão é usar uma terminologia militar, não uma terminologia de estabelecimento de cidadania. Se usamos esta terminologia bélica, vamos constantemente achar que a força é um procedimento normal e vamos continuar a ter a repetição da história de vítimas dos dois lados.
A política de segurança pública precisa passar por uma revisão de seu conceito do que é segurança, de como proceder com a redução de criminalidade e de violência, até mesmo de um ponto de vista legal. Mas é preciso ao mesmo tempo estabelecer uma credibilidade do estado como agente de fornecimento e de garantia dessa segurança pública. O Estado precisa aceitar os moradores dessas comunidades como partícipes dessa segurança pública, e não objetos dessa segurança pública.
Um outro elemento preocupante é que há uma total desconfiança mútua dos agentes em volta da questão da segurança pública. Os moradores das comunidades não confiam na polícia e a polícia olha para os moradores com suspeição. Os políticos não sabem lidar com essa situação. Falta uma base de negociação para o início de um processo de segurança pública por falta de confiança entre esses agentes.
Sobre o Autor
Daniel Buarque vive em Londres, onde faz doutorado em relações internacionais pelo King's College London (em parceria com a USP). Jornalista e escritor, fez mestrado sobre a imagem internacional do país pelo Brazil Institute da mesma universidade inglesa. É autor do livro “Brazil, um país do presente - A imagem internacional do ‘país do futuro’” (Alameda Editorial) e do livreto “Brazil Now” da consultoria internacional Hall and Partners, além de outros quatro livros. Escreve regularmente para o UOL e para a Folha de S.Paulo, e trabalhou repórter do G1, do "Valor Econômico" e da própria Folha, além de ter sido editor-executivo do portal Terra e chefe de reportagem da rádio CBN em São Paulo.
Sobre o Blog
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