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Blog do Brasilianismo

Representações culturais de domésticas no Brasil são analisadas em Oxford

Daniel Buarque

16/11/2017 11h21

Cena do filme "Que Horas Ela Volta?"

A ideia de que as empregadas domésticas que moram nas casas em que trabalham são consideradas "quase parte da família" mascara a exploração emocional e profissional dessas trabalhadoras. O fenômeno tem sido explorado por produções culturais, especialmente no cinema, e é o tema de uma pesquisa na universidade de Oxford.

Rachel Randall é professora de português e estudos latino americanos da Lady Margaret Hall, faculdade que faz parte de Oxford. Sua pesquisa atual se debruça sobre a forma como empregadas domésticas são retratadas na produção cultural do país.

Em entrevista ao blog Brasilianismo, Randall explicou sua pesquisa, falou sobre as mudanças nas leis trabalhistas no Brasil e sobre o legado da escravidão, que ainda marca muito o trabalho doméstico no país.

Brasilianismo – O foco da sua pesquisa é a representação de trabalhadores domésticos no Brasil. O que você descobriu até agora, e como você está conduzindo seu estudo?
Rachel Randall –
O meu projeto examina a representação de trabalhadores domésticos, em particular empregadas domésticas e babás, na produção cultural pós-ditadura brasileira e chilena, com foco particular em cinema, cultura digital, e literatura depoimentos. Estou interessada na forma como os laços emocionais entre os trabalhadores domésticos e as famílias que os empregam podem complicar e reforçar as fronteiras de classe e de raça estabelecidas nos dois países.

A pesquisadora Rachel Randall, de Oxford

As empregadas que moram no lugar de trabalho, por exemplo, são muitas vezes consideradas como "quase uma parte da família", mas estou interessada no fato de que várias produções culturais recentes aludem ao modo como esta narrativa mascara a exploração emocional e profissional desses trabalhadores. Na verdade, acho que o cinema, e particularmente o documentário, é um meio privilegiado para explorar e evocar esses tipos de laços complexos, emocionais e interpessoais – como, por exemplo, o documentário "Doméstica", de Gabriel Mascaro. Também estou interessada no fato de que a melhora das proteções para os trabalhadores domésticos, introduzidas em ambos os países ao mesmo tempo (em 2012 e 2014), coincidiram com um boom de produções culturais que retratam trabalhadores domésticos. Acho que as mudanças na legislação trabalhista para domésticas, nas circunstâncias econômicas e nas normas socioculturais levaram as pessoas, tanto no Brasil como no Chile, a refletir sobre a ética de empregar um trabalhador doméstico, particularmente alguém que vive permanentemente em sua casa.

Brasilianismo – Tem havido um forte debate sobre esse assunto desde há alguns anos devido a mudanças nas leis trabalhistas e por causa de filmes como "Que Horas Ela Volta?". Por outro lado, com a crise atual no país e as políticas de austeridade implementadas pelo governo, o Brasil parece estar dando um passo atrás em direitos sociais. O que você acha sobre o estado desse debate no Brasil?
Rachel Randall –
As alterações feitas no direito trabalhista no Brasil recentemente através da reforma do CLT são muito preocupantes, inclusive o fato de que agora é permitido que as mulheres grávidas trabalhem em condições insalubres, por exemplo. Eu não sou especialista em direito trabalhista e não tenho certeza exatamente como as reformas recentes irão afetar as proteções trazidas especificamente para trabalhadores domésticos sob a administração de Dilma Rousseff, quando receberam os mesmos direitos que outros trabalhadores.
Infelizmente, também parece que a crise econômica no Brasil está afetando o número de pessoas que realizam esse tipo de trabalho, que havia diminuído, mas recentemente começou a subir de novo

Brasilianismo – No site da universidade, você fala sobre o legado da escravidão na situação dos trabalhadores domésticos no Brasil. Quanto você acha que esse legado ainda molda a sociedade brasileira hoje?
Rachel Randall –
É claro que o legado da escravidão dá forma às relações atuais entre empregadores e empregados domésticos, a maioria dos quais são afrodescendentes. Eu acho que a ocupação é muitas vezes percebida como trabalho feminino de classe baixa por causa do fato de que muitas mulheres negras assumiram posições de serviço pago após o fim do trabalho escravo no Brasil. É por isso que os analistas políticos e os diretores de cinema (entre outros) continuam fazendo referência a "Casa Grande e Senzala", de Gilberto Freyre, no momento: eles veem que as conotações do trabalho emocional e corpóreo que se atrelaram aos corpos dos escravos (e em particular a mulheres afro-brasileiras durante a escravidão) ainda moldam as atitudes em relação aos trabalhadores domésticos, em particular empregadas domésticas e babás, no Brasil hoje.

Brasilianismo – Seu estudo também considera o caso do Chile. É possível comparar a situação dos trabalhadores domésticos no Brasil com qualquer outro país? Quão diferente você acha que é o caso do Brasil nesse assunto?
Rachel Randall –
Os trabalhadores domésticos enfrentam desafios comuns, mesmo quando trabalham em diferentes países, como a insegurança no trabalho e a exploração emocional e profissional. De fato, o trabalho doméstico é um fenômeno transnacional na medida em que muitos trabalhadores migram para países mais ricos para realizar esse tipo de trabalho e ganhar mais dinheiro do que no seu país de origem. Isso não quer dizer que não existam especificidades importantes em cada contexto nacional.

O Brasil e o Chile servem a uma comparação produtiva; nenhum dos dois havia introduzido proteções particularmente fortes para os trabalhadores domésticos até recentemente, quando fizeram isso em torno da mesma época e em resposta à Convenção da OIT sobre os trabalhadores domésticos (2011). Parece haver também uma evolução nas atitudes culturais em relação ao trabalho doméstico que ocorreu em ambos os países quase ao mesmo tempo e que tem sido expressa em filmes de ambos os países que têm tido muito sucesso, tanto em nível nacional como internacional.

O Brasil e o Chile também são semelhantes no sentido de que são sociedades altamente desiguais (uma situação exacerbada por longos períodos de ditadura militar), o que cria demanda e oferta de trabalho doméstico (embora este seja também o caso em outros países latino-americanos).

O trabalho doméstico em ambos os países também é extremamente "racializado", com muitos trabalhadores no Chile que migraram do Peru e da Bolívia (entre outros países), enquanto no Brasil essa migração tende a ser interna com trabalhadores provenientes de áreas mais pobres (muitas vezes o Nordeste) para trabalhar em centros urbanos no sul. Isso funciona como uma semelhança e uma diferença entre os países, o que eu pensei que poderia ser frutífero para explorar.

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Sobre o Autor

Daniel Buarque vive em Londres, onde faz doutorado em relações internacionais pelo King's College London (em parceria com a USP). Jornalista e escritor, fez mestrado sobre a imagem internacional do país pelo Brazil Institute da mesma universidade inglesa. É autor do livro “Brazil, um país do presente - A imagem internacional do ‘país do futuro’” (Alameda Editorial) e do livreto “Brazil Now” da consultoria internacional Hall and Partners, além de outros quatro livros. Escreve regularmente para o UOL e para a Folha de S.Paulo, e trabalhou repórter do G1, do "Valor Econômico" e da própria Folha, além de ter sido editor-executivo do portal Terra e chefe de reportagem da rádio CBN em São Paulo.

Sobre o Blog

O Brasil é citado mais de 200 vezes por dia na mídia internacional. Essas reportagens e análises estrangeiras ajudam a formar o pensamento do resto do mundo a respeito do país, que tem se tornado mais conhecido e se consolidado como um ator global importante. Este blog busca compreender a imagem internacional do Brasil e a importância da reputação global do país a partir o monitoramento de tudo o que se fala sobre ele no resto do mundo, seja na mídia, na academia ou mesmo e conversas na rua. Notícias, comentários, análises, entrevistas e reportagens sobre o Brasil visto de fora.

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