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Para especialistas dos EUA, 1964 foi um golpe clássico, e negar é ridículo

Daniel Buarque

30/03/2019 04h00

Mapa mostra incidência de golpes de Estado no mundo desde 1950

"Não existe ambiguidade."

"Não há dúvida."

"É inquestionável."

Para dois pesquisadores especialistas em estudar golpes de Estado pelo mundo, não há realmente nenhuma razão para negar que houve um golpe no Brasil em 1964. Qualquer tentativa de alegar o contrário, como fizeram recentemente o presidente Jair Bolsonaro e o chanceler Ernesto Araújo, é "ridícula".

"Este foi um caso clássico de golpe. Os militares intervieram ilegalmente na política de maneira aberta e, em seguida, tomaram o controle", explicou David Thyne, em entrevista ao blog Brasilianismo.

"No caso de 1964 no Brasil, não há espaço para qualquer ambiguidade. Não há realmente nenhuma razão para questionar se isso foi um golpe", avaliou Jonathan Powell, também em entrevista ao Brasilianismo.

Thyne e Powell são cientistas políticos nas universidades americanas do Kentucky e da Flórida Central, respectivamente. Juntos, eles são autores de um amplo banco de dados que reúne informações sobre todos os golpes de Estado (e tentativas de golpe) ocorridos no mundo desde 1950.

O levantamento "Coups in the World" (''Golpes no Mundo'') foi realizado originalmente em 2011, resultou no artigo acadêmico "Global Instances of Coups from 1950-Present" (instâncias globais de golpes de 1950 até o presente), e vem sendo atualizado desde então. No total, foram avaliados mais de 1.200 supostos golpes de Estado em 94 países no período.

Os pesquisadores não incluíram no banco de dados o impeachment de Dilma Rousseff como tendo sido um golpe. Na época, Thyne explicou que, mesmo que houvesse questionamentos ao processo, o fato de ele ter ocorrido dentro do processo legal constitucional não permitia que fosse visto como um golpe. Ainda assim, no período desde 1950 os pesquisadores avaliaram 20 situações de supostos golpes e tentativas no Brasil e reconheceram seis deles como rupturas ilegais de fato.

Segundo a pesquisa, houve golpe em 1955 (o Movimento de 11 de Novembro, tratado como "contragolpe preventivo" para garantir a posse de Juscelino Kubitschek e João Goulart, tentativas de tomada de poder fracassadas em 1959 e 1963, dois golpes em 1964 (em 31 de março e em 1º de abril) e outro em 1969 (quando uma Junta Militar assumiu após Costa e Silva ser afastado por problemas de saúde).

"A alegação de Jair Bolsonaro de que o Brasil não teve um golpe em 1964 é ridícula. Não há dúvida de que isso foi um golpe", disse Thyne.

Segundo ele, o apoio a Bolsonaro não deveria levar a aceitar a negação do golpe de 1964. "O Brasil tem grandes problemas, e pode-se entender por que o presidente Bolsonaro tem muitos apoiadores. No entanto, o apoio a um líder não deve ser dado ao custo de negar fatos. O Brasil teve um golpe em 1964. Esse golpe teve consequências desastrosas. O Brasil é um país incrível, com uma riqueza de recursos e boas pessoas. Não precisa negar a história para resolver problemas, e isso pode prejudicar os esforços para avançar."

Mesmo que não haja um consenso acadêmico sobre o conceito de golpe de Estado, a associação a um processo ilegal é uma das características mais mencionadas. Depois de levantar 14 explicações mais relevantes na bibliografia acadêmica, Powell e Thyne adotaram como definição de golpe de Estado a "tentativa ilegal e evidente por militares ou outras elites do aparato do Estado para derrubar o Poder Executivo".

"Nossa definição básica questiona: a ação foi ilegal (inconstitucional)? Foi realizada por membros do aparato estatal (geralmente membros das Forças Armadas)? A ação procurou remover o diretor executivo?", explicou Powell. Segundo ele, 1964 no Brasil se encaixa nisso "inquestionavelmente".

"Na verdade, não havia nada de incomum nesse golpe — é um exemplo básico. Quando definimos golpes, nos concentramos nos (1) alvos — deve ser o chefe do executivo, (2) perpetradores — devem vir da(s) elite(s) que fazem parte do aparato estatal, e (3) táticas — devem ser ilegais e evidentes", complementou Thyne.

Para os dois pesquisadores, em muitos casos de golpe pelo mundo de fato há ambiguidade e disputas na definição do ocorrido, mas este não é o caso do Brasil. "Pode haver ambiguidade, especialmente se as massas já estiverem mobilizadas contra o governo. Por exemplo, pode-se debater se Hosni Mubarak (no Egito) foi forçado a renunciar pelo Exército em 2011, ou se o fez apenas por causa de protestos contra ele", explicou Powell.

Esse não é o caso de 1964 no Brasil, complementou o pesquisador. "Um problema comum é que é fácil confundir o evento com o que acontece depois. Nesse caso, Bolsonaro poderia estar elogiando o que o golpe fez no longo prazo. Por exemplo, pode ter evitado o comunismo e ter facilitado uma eventual transição democrática, mas isso é irrelevante para determinar se a remoção do presidente foi ou não um golpe. Os golpes podem e geralmente têm impactos de longo prazo, alguns bons, outros ruins (geralmente ruins), mas isso não muda a natureza da forma como o poder mudou de mãos", explicou.

Ele citou como exemplo a "Revolução dos Cravos", em Portugal, que "foi obviamente um golpe militar", mas que "abriu a porta para uma transição democrática". "Esse resultado específico não muda o fato de que a remoção do regime do Novo Estado foi um golpe." Powell acrescentou, entretanto, estar em "total desacordo com a sugestão de que o golpe de 1964 fez algo de positivo".

Thyne também admitiu que alguns golpes podem ser justificados em nome de "salvar a democracia". "Embora eu não concorde que o golpe de 1964 no Brasil fosse justificado, esse é um argumento que alguém poderia apresentar. Se foi ou não um golpe, não pode ficar em dúvida, no entanto. Isso foi", disse Thyne.

O questionamento à natureza da forma como o governo mudou de mãos muitas vezes está ligado aos efeitos gerados pela tomada do poder de forma ilegal. Segundo eles, entretanto, a tentativa de negar a existência do golpe busca mudar a história.

"Os líderes de golpes e seus apoiadores muitas vezes se esforçam para convencer os observadores de que suas ações não são um golpe. Nesse sentido, alegar que o que aconteceu em 1964 não é um golpe não é incomum. O que é um pouco estranho é a necessidade de tentar fazer isso mais de meio século depois. Sem saber muito sobre a política brasileira, esse tipo de revisionismo geralmente sugeriria apoio ao que os líderes do golpe acabaram fazendo", avaliou Powell.

Segundo Thyne, líderes políticos sempre têm um forte incentivo para manipular eventos históricos para ajustar a suas narrativas. Isso vale não só para o Brasil. "A alegação do presidente Jair Bolsonaro pode parecer particularmente notória, mas não é. Nos Estados Unidos, por exemplo, continuamos debatendo o legado de nossa Guerra Civil, e podemos encontrar estátuas e nomes de ruas homenageando 'heróis' confederados (realmente traidores) em todo o país. Bolsonaro tem historicamente elogiado o governo militar no Brasil e tem mostrado apoio a ditadores brutais em lugares como o Paraguai e o Chile. Embora ele esteja completamente errado, seu apoio ao golpe de 1964 e o caminho desastroso que ele precipitou se encaixam claramente em sua narrativa dos benefícios do autoritarismo e, portanto, não é completamente surpreendente."

Debates sobre impeachment e golpe

Apesar de terem trabalhado juntos no banco de dados e de terem avaliação semelhante sobre o golpe de 1964 no Brasil, Powell e Thyne têm opiniões diferentes sobre o possível impacto do debate sobre o impeachment de Dilma Rousseff ter sido ou não um golpe de Estado no atual questionamento sobre a ditadura militar no país.

"Eu definitivamente acho que o debate sobre os eventos de 2016 terem sido um golpe abriu espaço para questionar golpes passados", disse Thyne. Powell não vê assim. "Não acho que o impeachment tenha mudado nada. Sempre houve esforços para legitimar golpes após o fato, seja tentando enquadrá-los como legais ou como tendo sido 'bons'. A única coisa diferente neste caso é o tempo passado desde o evento em questão."

Para Thyne, um ponto importante é entender que a avaliação acadêmica de cientistas políticos diverge da forma como os próprios políticos interpretam os eventos.

"Como pesquisadores, nos concentramos nos fatos e fazemos uma avaliação desapaixonada sobre um evento ter sido ou não um golpe. Os políticos têm uma estrutura de incentivos diferente — em vez de precisarem estar certos, precisam buscar apoio para manter suas posições de poder. Assim, eles freqüentemente se apegam à incerteza para impulsionar suas agendas. A palavra "golpe" claramente tem uma conotação negativa, e nós vimos líderes usá-la e evitar usá-la para atender às suas agendas políticas. É por isso que fatos e evidências são tão importantes."

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Sobre o Autor

Daniel Buarque vive em Londres, onde faz doutorado em relações internacionais pelo King's College London (em parceria com a USP). Jornalista e escritor, fez mestrado sobre a imagem internacional do país pelo Brazil Institute da mesma universidade inglesa. É autor do livro “Brazil, um país do presente - A imagem internacional do ‘país do futuro’” (Alameda Editorial) e do livreto “Brazil Now” da consultoria internacional Hall and Partners, além de outros quatro livros. Escreve regularmente para o UOL e para a Folha de S.Paulo, e trabalhou repórter do G1, do "Valor Econômico" e da própria Folha, além de ter sido editor-executivo do portal Terra e chefe de reportagem da rádio CBN em São Paulo.

Sobre o Blog

O Brasil é citado mais de 200 vezes por dia na mídia internacional. Essas reportagens e análises estrangeiras ajudam a formar o pensamento do resto do mundo a respeito do país, que tem se tornado mais conhecido e se consolidado como um ator global importante. Este blog busca compreender a imagem internacional do Brasil e a importância da reputação global do país a partir o monitoramento de tudo o que se fala sobre ele no resto do mundo, seja na mídia, na academia ou mesmo e conversas na rua. Notícias, comentários, análises, entrevistas e reportagens sobre o Brasil visto de fora.

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